Existe uma expressão em japonês que eu adoro: mono-no-aware, que algumas pessoas traduzem como a tristeza das coisas. Na verdade, é um conceito um pouco mais amplo que fala sobre a melancolia de perceber a passagem do tempo e a fugacidade de tudo que é vivo; a tristeza e a nostalgia que surgem diante da beleza do fim. É o que sentimos quando vemos a flor mais bonita do ano se abrir, conscientes de que ela vai cair dez dias depois. É a mesma sensação de quando perdemos alguém ou alguma coisa que amamos, de quando vemos nossos pais envelhecerem, ou somos obrigados a nos despedir de quem éramos para nos tornar outra coisa. Tenho sido invadida por um sentimento muito grande de mono-no-aware.
No último sábado, perdi um animal de estimação, o segundo em menos de seis meses. Nazaré era uma gatinha pequena e adoentada, que apanhei na mão logo que nasceu (a mãe dela, sobre a qual ainda quero escrever aqui, é uma gata selvagem que vive a contragosto com a gente). Uma gatinha meio ruiva, meio aloirada, que no começo pensei ser um macho, e que veio para alegrar meus dias. Mesmo fraquinha, porque já nasceu ameaçando morrer, era esperta e alegre, e nós cuidamos dela com muito carinho. Eu e o meu marido, João, temos uma certa vocação para o amor e a gentileza, mas do nosso jeito quieto. Ele, em especial, é um homem de coração enorme, que não gosta de fazer disso um alarde. Nossa modalidade de amor é calma, silenciosa, como a linguagem dos próprios gatos.
Desde o começo da minha gestação, Nazaré se embrenhou em mim, era a única gata da casa que se aninhava na minha barriga, e fiz várias fotos e vídeos desses momentos, imaginando que ela e Isabel, minha filha que nasce logo mais, seriam muito amigas, e que um dia eu poderia fazer uma colagem visual dessa relação.
Pois é, não deu tempo.
No sábado, Nazaré morreu. Teve uma falência geral, uma parada cardíaca, algo tão súbito que a veterinária não conseguiu entender. Ela foi picada por alguma cobra, comeu algum bicho peçonhento? Não sabíamos. A bichinha morreu nos meus braços, enquanto corríamos apavorados para o hospital veterinário, e tentamos por vários minutos seguidos reanimar o corpinho. Foi muito triste. Nessas horas, bate um imenso sentimento de culpa. A sensação de que podíamos ter feito diferente, de que poderíamos ter chegado antes, percebido antes que ela não estava bem, que o socorro teria feito diferença. Coisas que agora não importam, porque Nazaré já não é. Eu e João a enterramos no quintal, junto aos pés de limão e laranja recém-plantados, e ao lado de onde enterramos o Senhor Wilson, nosso outro gatinho, também muito amado, que morreu atropelado em abril.
Fiz questão que Nazaré fosse enrolada na roupa que eu vestia no momento: um vestido florido e desbotado, que eu tinha há uns bons dez anos, meu vestido preferido para ficar em casa. Senti que eu precisava, também, deixá-lo para trás, e é justo que eu deixasse com ela algo favorito meu. Como uma forma de agradecimento por todo o amor que ela me deixou.
Eu e João moramos em um bairro de Brasília um pouco afastado do centro, uma região conhecida como Jardim Botânico e Tororó, que fica próxima de muitas reservas ambientais. Logo que nos casamos, há quatro anos, percebemos que tínhamos o desejo em comum de morar na natureza, em uma casa com quintal e muitos gatos. Não somos pessoas da cidade e investimos tudo que tínhamos – economias, esforços e um pouco da nossa sanidade mental – para construir o projeto. Conseguimos, ainda que às custas de muitas dívidas, que demoraremos uma década ou mais para pagar. Nossa casa é linda e, aos poucos, vai ganhando novos móveis, novas plantas, novos eletrodomésticos. Em menos de duas semanas, também vai ganhar uma nova habitante.
Enquanto escrevo esse texto, contabilizo 37 semanas e três dias de gravidez. Para os leigos, é um pouco mais de nove meses. Isabel pode nascer a qualquer momento. É a minha primeira filha. As pessoas perguntam, o tempo todo, como estou me sentindo. E eu, a escritora sabichona, não sei responder muito bem. Falta vocabulário.
Passei essa gestação inteira com medo. Como alguns leitores talvez saibam, tive problemas para engravidar e Isabel veio após um longo tratamento de fertilidade. O medo de perdê-la antes mesmo de chegar a tê-la era gigantesco. Cada ida ao banheiro envolvia uma conferida aliviada no papel. Agora, na reta final, é curioso que eu não esteja mais ansiosa dessa forma. Quero dizer, não é que eu não esteja com medo. Parir outro ser humano – e pretendo parir pela via natural, se for possível – é algo meio assustador mesmo. Mas algo me diz que essa parte vou tirar de letra. Porque já nasci, porque sei fazer nascer. Não é medo o que sinto. É uma espécie diferente da ansiedade com a qual sempre convivi, algo que é bom e puro, e não ruim e assombrado.
É um clichê dizer, simplesmente, que estou aguardando para conhecer meu grande amor, mas sou uma mulher de muitos clichês – então, sim, a sensação é que estou esperando pelo trem que vai me trazer outro coração. Na mesma estação, no entanto, também desembarcam muitas tristezas. É que a vida em si não é a dualidade que ensinam nas obras de ficção duvidosa, não é mesmo? Não existe só luz, ou só sombra. É preciso aceitar que, às vezes, tudo vai chegar ao mesmo tempo. A felicidade, a tragédia, a mudança e os problemas. Você pode até estar preparada, mas nunca vai estar pronta.
Junto com essa escolha consciente de ter um filho – que é mesmo uma escolha muito grande – estou vivendo uma série de transformações, como qualquer outra mulher que decide ser mãe. Parece que tenho me despedido de muitas coisas, coisas demais, e às vezes não sei o que fazer com isso. Não estou falando apenas dos sacrifícios que já fiz, do corpo que não é mais o corpo que era, mas também sobre essas pequenas despedidas cruéis, sobre perder meus gatos, sobre abrir mão de compromissos de carreira, e abrir mão até mesmo dessa coisa que sempre me definiu, que é escrever. Agora, minha vida é esperar pela outra vida. Eu contemplo e espero por Isabel, porque ela é mesmo tudo que importa. É uma espécie de mono-no-aware, uma tristeza pelo fim, que no caso também é um começo.
As pessoas se preocupam comigo, sobretudo a minha família, que é especialista em preocupações. Querem saber se estou bem, se estou nervosa, pedem que eu não fique muito ansiosa ou triste, que não é bom para Isabel se eu chorar. Como se fosse possível passar por tudo isso sem chorar, até porque os hormônios são ótimos para abrir a torneirinha da alma. Agora eu choro o tempo todo (e nem apago a luz para isso). Não acho que faça mal. É bom que Isabel já saiba, desde agora, que o amor é isso. Em breve vou poder dizer: eu te amo. Dói muito, tudo dói, mas eu te amo mais do que a dor e o cansaço. Penso que seja justo e alegórico que o parto também doa.
Até a próxima
Esse texto incrivelmente pessoal vem para dizer que, a partir de agora, serão mais esporádicas as edições gratuitas das Tristezas de estimação (que aliás podem ser uma tradução indireta de mono-no-aware, se você parar para pensar). Não é um recesso prolongado, é mais uma pausa. Os apoiadores devem receber edições especiais durante o meu puerpério. Se você puder assinar, se couber no seu orçamento e se desejar continuar recebendo os textos especiais sobre escrita e criatividade que estou produzindo de antemão (juro que são ótimos), é hora de fazer isso aqui. Prometo que vai valer cada centavo que custar, e só custa 9,99 por mês.
Lindo. Sinto muito pela gatinha ❤️
Que lindo ♥️