Na semana passada assisti ao excelente documentário A caverna dos sonhos esquecidos, do Werner Herzog, que está disponível no Mubi. No filme, o diretor e sua equipe filmam pela primeira vez uma caverna no sul da França que guarda registros feitos há 32 mil anos. Por conta de um deslizamento de terra, a caverna foi bloqueada por um paredão de pedras e calcário, criando condições perfeitas para que as pinturas rupestres do local fossem preservadas ao nível do improvável, quase uma cápsula do tempo. É tudo tão fresco e nítido que os pesquisadores ficaram assombrados, à época, e determinaram que se trata da mais antiga produção artística da humanidade.
Entre bisões, mamutes, leões-da-caverna e cavalos perfeitamente sombreados, uma parte do documentário me chamou atenção: logo na entrada da caverna, várias marcas de mãos saúdam os recém-chegados. Uma das pesquisadoras identificou que as impressões provavelmente foram feitas pela mesma pessoa por conta de um pequeno detalhe, um mindinho torto, que é perceptível no contorno. Ao longo da caverna é possível encontrar o mesmo mindinho perdido em outras paredes. O autor da obra, pelo visto, era um artista prolífico.
A técnica dos desenhos da caverna de Chauvet impressiona. Além do sombreamento e do uso da curvatura da caverna para aplicar profundidade, vários animais são retratados com mais de um par de pernas, simulando o movimento contínuo. É uma pena que se saiba muito pouco sobre a cultura de quem produziu os desenhos. Pela ausência de ossos ou vestígios humanos, a conclusão dos arqueólogos é de que o lugar provavelmente era usado para cerimônias ou rituais. Mas essa é uma ciência de poucas certezas.
A verdade é que produzir arte também é uma necessidade evolutiva, ainda que se busque explicações práticas. Talvez as pinturas da caverna de Chauvet fossem uma forma de honrar os deuses ou aprisionar a memória, mas talvez os homens e mulheres do paleolítico que as fizeram quisessem apenas registrar a experiência da realidade, celebrar a beleza da própria consciência. Eles com certeza sentiam. Desconfio que sentiam e pensavam de forma muito parecida com a nossa, inclusive. É só olhar para as pinturas. É um eco, uma mensagem que chega partida ao meio, que gera mais perguntas do que respostas, mas por que precisamos ter respostas para tudo? Mesmo que o mundo seja outro, a humanidade reage e se encaminha para as mesmas direções.
Desde que vi o documentário, não paro de pensar na pessoa do mindinho torto. Acho engraçado porque, quando se trata de produzir literatura, uma das coisas que sempre repito é que todo mundo que escreve tem que entender o próprio projeto, encontrar a própria voz, por mais batido que isso soe. Não se trata de escrever um livro isolado, um planetinha na sua galáxia vazia. E sim de entender o que você quer fazer, como você quer fazer, e fazer isso bem a ponto de que qualquer história que você conte possa ser uma história sua.
A marca dos escritores que já se descobriram é visível como um mindinho torto.
Muitos anos de familiaridade com a escrita me mostraram que tenho uma série de temas e personagens que voltam, espécies de arquétipos que se manifestam na minha ficção por motivos que eu não saberia dizer. Escrevo muito sobre cidades do interior, sobre morte e remorso. Gosto de escrever sobre criaturas solitárias e velhinhas meio doidas. O campo também está na minha escrita porque eu vim de lá. O meu projeto literário, arriscaria dizer, é feito de melancolia e Cerrado.
É claro que nós, escritores, temos pavor da própria repetição. Criar pressupõe convocar o novo. Não é sobre insistir na mesma história e sim entender que aquilo que é só nosso transparece. E é uma delícia descobrir como a gente escreve. Sempre pensei, por exemplo, que o mercado não tivesse um lugar para mim. Quem já leu alguma coisa minha vai perceber que não sou uma escritora de técnica assim apurada, carneiro de ouro dos galardões literários, não experimento com a linguagem a ponto de tentar refazê-la. Também não sou considerada “comercial”, essa ideia besta de uma escrita de entretenimento, que inclusive é um papo para outra edição da newsletter. Minha escrita é simples. Adoro uma narrativa bem conduzida, um plot twist na manga. Mas tento ser elegante em como dizer as coisas (nem sempre consigo). Todas as vezes em que tentei escrever de outro jeito, fabricar uma sofisticação que não existia, fracassei. As coisas são como são.
Hoje em dia me sinto confortável na minha pele. Toda vez que começo um projeto novo sinto um calorzinho no peito, é como colocar um velho casaco com a marca do meu corpo. A sensação é de posso fazer qualquer coisa com as palavras que conheço de perto. Eu tenho muitas histórias para contar, mas é o jeito como escrevo que importa, quem lê a gente reconhece. Acho que isso é ter identidade. O que é muito importante para qualquer artista porque dá um norte e um propósito. Há 32 mil anos criar é o próprio propósito.
Antes do fim…
Quero desejar um fim de ano tranquilo e um feliz 2023 para vocês que ainda leem esta pequena newsletter. Que seja cheio de paz e próspero. Que a gente saiba amar, ser feliz e reconstruir o propósito. As tristezas de estimação foram mais um projeto que eu comecei em 2022 e tenho o orgulho de não ter desistido delas. A newsletter é gratuita, mas vou passar a deixar aqui o meu PIX (e-mail) para quem quiser contribuir com um agradinho qualquer para a escritora que se arriscou a viver de escrever e às vezes tem desgosto das coisas que escreve por dinheiro: fabiane.c.guimaraes@gmail.com. O cheque especial agradece.