Há uma cena do péssimo filme The Circle na qual penso com muita frequência. Nela, a personagem interpretada por Emma Watson é entrevistada para o emprego “dos seus sonhos” em uma empresa de tecnologia. Ao ser questionada sobre qual seria seu maior medo, a personagem responde: unfulfilled potential. Uma tradução inexata diria “potencial desperdiçado”, embora não seja isso. O medo da personagem é mesmo o potencial nunca aproveitado, o talento que perde sentido por falta de uso. Não é, portanto, uma questão de desperdiçar, e sim de não atingir. Na época em que vi o filme (muito ruim, não recomendo), fiquei remoendo esse trecho específico porque aquilo me pareceu extremamente pessoal. Eu tinha então 27 anos, alguns trabalhos literários de pouquíssima repercussão, e achava que meu sonho de ser escritora publicada & reconhecida nunca se realizaria. Era dramática ao ponto do ridículo, porque tinha medo desse fracasso precoce, e na juventude tudo parece assim muito grave. O meu maior fantasma era o medo de ter todas essas coisas aqui dentro de mim e nunca conseguir mostrar.
É muito difícil seguir uma carreira criativa. Arte não é útil. Um livro ou uma pintura não salvam a vida de ninguém, na maior parte dos casos sequer a modificam. É natural ter vergonha, no começo, da própria inadequação prática. A gente se acostuma a esconder as coisas que criou, a procurar um trabalho mais confiável, mantendo o lado artístico sempre à sombra, uma espécie de identidade secreta que só é revelada de vez em quando, recebe um que legal e depois morre no silêncio. Nas mulheres, isso é ainda mais frequente, porque mulher já nasce aprendendo a ter vergonha. Os artistas que se atrevem a sair da sombra e conseguem colher algum resultado, qualquer que seja, são os alvos máximos de admiração. Mas a verdade é que não é apenas uma questão de mostrar o que faz, ou vestir a própria camisa, existe um componente objetivo nisso tudo, muitas vezes ignorado, que é o lado profissional de inventar. Escritores são profissionais possíveis porque tem gente que precisa ler. Escrever é possível.
Na época em que vivia angustiada por todas aquelas possibilidades natimortas – o contrato não celebrado, a rejeição da minha editora dos sonhos –, fui buscar conselho espiritual em um terreiro de umbanda. Uma das entidades, impaciente comigo (e com razão), veio mandar que eu acreditasse em mim. Gostaria de poder escrever um relato bonito descrevendo como esse evento e todos os acontecimentos que vieram depois talharam o meu processo corajoso de acreditar. Mas estaria mentindo. Eu não acreditei em mim. Na verdade, confesso que às vezes continuo sem acreditar direito. O que fiz foi seguir em frente, sem esperar a confiança bater, porque não é um trabalho fácil ter fé em si mesma, mas a experiência ajuda a criar a crença. Para todo mundo que é meio São Tomé, e só acredita vendo, aconselho a se deixar ver.
Faz muita diferença encarar a escrita como um trabalho, uma ocupação séria, que de fato ocupe uma fatia de tempo, ainda que seja durante as madrugadas em que a casa inteira dorme. Não é uma corrida para ver quem publica primeiro. É muito mais sobre construir a própria trajetória, com seus altos e baixos, e mostrar alguma coisa pronta e concluída, porque não dá para trabalhar com o que não foi escrito. Nesse sentido, também é urgente ter disposição para se aperfeiçoar. Cada estágio vencido vai ser uma dificuldade diferente. Depois de publicar o livro, será muito complicado vender o livro, mas até aí são desafios conhecidos e experimentados. A maior batalha é seguir escrevendo, enxergar a crítica como uma maneira de crescer, sem morrer de depressão pelo texto que saiu fraco, driblando o cansaço e a tristeza. Até mesmo os silêncios, aqueles longos períodos inóspitos sem criar, são determinantes. Silêncio pode indicar uma mudança de rota, de tom e significado. Eu acolho os meus bloqueios, porque eles também ensinam.
Nessa jornada inglória, os becos de saída são igualmente caminhos. Minha editora na Alfaguara, Luara, me conheceu primeiro por um outro trabalho que preferiu não publicar. Se eu tivesse deixado de insistir em escrever, naquele dia, eu não teria o Apague a luz e todas as coisas lindas que andam acontecendo. Escrevi muitas coisas, algumas nunca virão à luz, outras germinaram, e há também aquelas que foram só cartões de visita. Hoje vejo a literatura como uma carreira. Ganho dinheiro suficiente para me manter? Não. Para isso, tenho outros trabalhos. Mas espero que um dia seja possível viver de escrever. É meu sonho de agora.
Sempre achei interessante esse duplo significado da palavra sonho porque faz parecer que é preciso apagar-se para alcançar um estado subterrâneo de consciência, e parece impossível materializar o que só existe do lado de dentro. Mas é precisamente o contrário, acho. Sonhar em escrever implica escrever e se aproximar de quem escreve, escrever até virar realidade, e se ainda não houver um espaço, reescrever tudo. Para quem não é herdeiro, não mora nos lugares certos e nem nasceu com o gênero e a cor mais valorizados, vai ser ainda mais difícil, quase intolerável de acreditar. Mais um motivo para seguir. Até a fé, de vez em quando, tem que ser inventada.