Outro dia vi um vídeo de uma britânica explicando como as estruturas de classe e poder no Reino Unido são tão marcantes, a ponto de anular qualquer tentativa de mobilidade social. Não achei o vídeo para colocar aqui, mas o que ela diz, em resumo, é o seguinte: se você nasceu pobre ou na classe média e não frequentou os melhores colégios e instituições de educação, pode até ser que você consiga ganhar muito dinheiro, mas nem todo o dinheiro do mundo disfarçará o fato que você veio do buraco. O jeito de falar entrega, porque até o sotaque evidencia a origem, e essas coisas são impossíveis de remodelar. Ela dá como exemplo a Adele, uma das cantoras mais famosas do mundo, que deixa claro de onde saiu só ao abrir a boca (e não é para cantar). Achei muito interessante e vi várias conexões com a realidade brasileira. Depois do resultado do Prêmio Jabuti divulgado ontem, voltei a pensar nisso, e vocês sabem o motivo.
É muito difícil chegar a um lugar que está há muito tempo ocupado. Você pode até conseguir entrar, arranjar uma cadeira, mas ficará flutuando no ar uma certa estranheza, porque ninguém te viu ali antes. Se alguém defende que é justo e democrático que os novatos tenham também espaço, pode ser que os outros concordem, que o microfone seja cedido – mas não demais, que não é para a gente se acostumar com o palco. Se por acaso o espaço for maior do que o previsto, as críticas vão começar a surgir, porque afinal esse templo não surgiu para o maniqueísmo das minorias, e arte não deve ser um “manifesto social”. Ocupar lugares que já estão ocupados é uma tarefa lenta e um longo trabalho de resistência, que infelizmente não se resolve em apenas um punhado de anos, que não dura o tempo da nossa vida.
Falo com conhecimento de causa, porque muito já me iludi achando que era uma questão de competência. Essa coisa dos prêmios, das feiras literárias, de quem é evidenciado o tempo todo está muito conectada a um contexto social, cultural e geográfico, de pessoas que se apoiam mutuamente, de amigos que estudaram juntos, e por aí vai. É triste, mas é verdade, todos sabemos disso, e isso não vai mudar só porque um autor baiano e negro escreveu o maior best-seller dos últimos tempos, um autor cearense ganhou um dos mais prestigiados prêmios literários dos Estados Unidos, e uma mulher escreveu um calhamaço que veio a se tornar o melhor livro de literatura brasileira das últimas décadas, talvez do século.
O que eu quero dizer é que com o trabalho duro e o amor pela escrita é possível escrever grandes coisas e furar essa bolha, mesmo se você veio do buraco ou não conhece as pessoas certas, mas há certos lugares que não serão ocupados tão cedo, pelo menos não pela gente. É muita coisa para ser mudada no espaço de tempo que nos será permitido viver. Pacificar isso na nossa cabeça é o primeiro passo para não se estressar, e também para não desistir.
É óbvio que eu estava torcendo pelo Via Ápia, por exemplo, na categoria romance literário. Todos estávamos, acho. Fica um sentimento de decepção natural. Alguém pode dizer algo como “não dá para um autor negro ou parte de alguma minoria ganhar toda vez, o discurso social não é mais importante que a qualidade literária”, e eu iria concordar, se o livro fosse ruim. Deus sabe que eu tenho as minhas críticas, que são bem pontuais, ao identitarismo e à necessidade de ter sempre obras políticas e contundentes. Mas Via Ápia é um romance incrível, e não só porque explora com profundidade uma vida que não é vista nos holofotes. É porque é inventivo, tem diálogos geniais, emociona e quase me fez chorar. É um ótimo livro de um ótimo escritor, que por acaso é um jovem negro e está longe dos imortais.
Se por um lado é meio decepcionante ver que o mérito literário é apenas um dos ingredientes desse tal sucesso literário, por outro é uma forma de libertação. Eu, pelo menos, já desisti há muito tempo de sonhar com uma atenção e uma grandeza que provavelmente nunca virão. Eu sei que poderia vender muito mais livros ou aparecer muito mais se fizesse certas concessões ao meu ritmo de vida, se me mudasse para São Paulo, se não tivesse escolhido ser mãe agora. Sou privilegiada e agradecida por ter uma editora que me publicou e acho que se interessa em continuar publicando, e isso já é o suficiente. Eu quero escrever, preciso escrever, mas fazer isso sem buscar voos inacessíveis, ou pelo menos sem ficar obcecada, me dá liberdade para criar meu projeto literário.
No fim, o que importa é que existem leitores. Eles e elas, acredito, são muito mais importantes que os prêmios (e mais fáceis de conquistar).
Para complementar o post:
O Rodrigo Casarin explicou como funciona o júri dos prêmios e confessou que, sim, às vezes até os jurados se surpreendem.
O Jeferson Tenório foi cirúrgico sobre isso também aqui.
Um texto agridoce. Ando pensando muito numa frase, dentro do meu contexto, mas que também cabe aqui: fazer as pazes com as possibilidades.
Às vezes, é o que precisa para encontrar equilibro e seguir fazendo o que acreditamos.
o final do texto super conversou com meus sentimentos atuais: ter liberdade pra criar meu projeto literário sem ficar obcecada com voos inacessíveis.