Sempre fui obcecada pela ideia de escrever romances. Embora eu seja uma contista razoavelmente boa, tenho esse apego (às vezes injustificável) por narrativas longas. Muita gente deduz que Apague a luz se for chorar foi meu primeiro livro escrito. Jamais: escrevi pelo menos uns dez. Parei na metade de alguns, outros exterminei antes de tomar forma. Há também aqueles que cometi a chamada escrita culposa, que é quando a gente escreve, mas não tem intenções de publicar. Carrego cada uma dessas histórias comigo, até mesmo as que hoje detesto.
Fico impressionada quando recebo mensagens de pessoas que me dizem que escreveram um livro, o primeiro livro, e já se frustram por não conseguir publicar. Recomendo sempre ter paciência, porque é quase impossível encontrar a própria voz com um único texto. É aconselhável escrever e reescrever incontáveis começos, arriscar alguns poemas ruins (se a pessoa tiver alma macia), subverter o gênero do conto escrevendo novelas inteiras. Faz muito bem abrir um blog com uma audiência de dez pessoas, mandar um texto tímido para o jornal do bairro, imprimir uns zines de qualidade duvidosa com desenhos feitos à mão. E ler, exaustivamente, quem veio antes. São todas essas coisas que ajudam a gente a chegar lá, mesmo que o lá ainda nem exista, porque até o destino é você que tem que criar.
Não se engane, os gênios também precisam disso. Tenho, em algum lugar da minha casa, um livro que reúne contos antigos de Guimarães Rosa, de quando era ainda um menino e publicava no jornal O Cruzeiro. “Antes das Primeiras Estórias” foi publicado pela editora Nova Fronteira em 2011 e hoje está esgotado (descobri que é vendido por uma pequena fortuna na internet, bom saber). Pouca gente sabe que Guimarães era fã de literatura policial e noir. Os contos mostram que ele também passou por esse processo delicioso de se aventurar pelas primeiras ideias e é quase um alívio perceber que nem mesmo ele era tão bom.
Nem toda história escrita merece ou está pronta para ser publicada. Às vezes, vão alguns livros para acertar o livro que você mirou no começo. Também acontece de escrever alguma coisa e só achar sentido nela anos depois. Ou parar de produzir algo porque ainda não viveu o suficiente para dar conta do recado. A vida e a escrita se entrelaçam, uma alimenta a outra, e em nenhuma das duas é possível engolir o tempo.
Escrever envolve partir de lugares íntimos e pequenos, e as histórias deixadas para trás também importam. Todos os parágrafos ruins e as doses exageradas de adjetivos importam. Até mesmo este texto um tanto cafona de newsletter, que talvez não vá fazer sentido daqui a dez anos, importa. Escrever é definitivo para a pessoa que escreve, ainda que ninguém leia.
As histórias deixadas para trás não morrem, voltam com outras roupagens. É sabido que nós, escritores, reciclamos ideias. Ou reciclamos imagens, personagens. Nesse sentido, é sempre uma dúvida cruel saber qual ideia priorizar, porque é verdade que as ideias frescas, aquelas que surgem agora, sempre parecem mais bonitas e melhores. Escolher largar o osso também dói. Meu conselho? Insista naquelas histórias que continuam fazendo sentido, mesmo com o tempo.
Dicas
Comecei a ver Upload, a comédia do Amazon Prime na qual as pessoas podem transportar sua consciência para um paraíso digital antes de morrer. Para além do plot romântico, que não funcionou muito bem comigo, estou fascinada pelo enredo e a forma como explora os conceitos de viver no abstrato da nuvem. Depois de dois anos de pandemia e uma transição definitiva ao modelo de trabalho em casa, só tenho cultivado relações pela internet. Não posso dizer que minhas experiências são menos reais por isso.
Em Upload, os personagens discutem o tempo todo sobre o que é existir. Uma consciência, sem um corpo físico, constitui vida?
Recomendo sem ressalvas.
Para quem também quer ler algo que reflete com um pouquinho mais de profundidade sobre o mesmo assunto, indico um conto chamado “O ciclo de vida dos objetos de software”, do livro Expiração, do meu amorzinho Ted Chiang. Aliás, indico o livro inteiro, que é ouro puro.
"Escrever é definitivo para a pessoa que escreve, ainda que ninguém leia." SIIIIIM
Amei o texto <3
"Insista naquelas histórias que continuam fazendo sentido, mesmo com o tempo.", amei e já vou seguir aqui pra continuar acompanhando <3