Como alguém que escreve, sempre gostei muito de escutar histórias. Essa é a parte do jornalismo que mais sinto falta, das entrevistas. Gente idosa, em especial, me fascina. Certa vez, entrevistei um ex-combatente brasileiro da Segunda Guerra Mundial, que vestiu o uniforme completo para me receber em casa. Ele não se lembrava de muita coisa da guerra, apenas da bomba que o deixou surdo de um ouvido e matou um de seus amigos. E das moças bonitas que ofereceram água e comida aos soldados cansados. Das moças falou mais de uma vez. A memória, percebi, é um recorte. Na velhice, tudo que resta é a história que escolhemos contar para nós mesmos, e às vezes é muito melhor lembrar das mulheres do que das bombas.
Mais do que o passado, no entanto, é o relato do presente que me interessa. Se o corpo humano é uma espécie de máquina do tempo, atravessando as próprias décadas, o agora é o único resultado da viagem. Saber olhar e interpretar o tempo imediato é uma arte.
Durante minhas andanças como repórter, também me marcou o depoimento de um senhor, um pioneiro da construção de Brasília, ainda muito lúcido em seus quase 90 anos. Outro que me recebeu em casa, junto da esposa (essas eram sempre excelentes recepções). Nem me lembro mais o contexto da reportagem e o motivo pelo qual o entrevistei, mas me lembro muito bem do que me disse quando perguntei, com muito tato, como ele via a morte naquela idade. A resposta dele foi mais ou menos a seguinte:
“É como um jogo de batalha naval. Toda vez que recebo a notícia de um conhecido da minha idade que faleceu, penso ‘água! água!’, porque ainda não fui eu a ser atingido.”
Essa descrição me marcou tanto que já pensei várias vezes em encaixá-la em algum romance. Ainda que não fosse um escritor, aquele senhor conseguiu narrar exatamente o que é viver na própria época.
Desde a pandemia, tenho sentido com força o absurdo dos nossos tempos, e às vezes me impressiona a rapidez com a qual estamos esquecendo de tudo. Eu mesma ainda me assombro ao lembrar que outro dia ficamos em quarentena, vigiando o número de mortos por um contador digital, vivendo com a sombra da morte no nosso calcanhar, e gritando água! água! quando nossos doentes saíam da UTI (se saíam). Até os detalhes mais pequenos parecem absurdos. Estou gestando uma filha e não sei como vou contar que um dia houve esse vírus que prendeu as pessoas em casa, assistindo lives de cantores na esperança de sobreviver. Um vírus que deixava as pessoas sem conseguir sentir o cheiro e o gosto das comidas. Parece o roteiro de uma ficção científica qualquer. Então, me lembro que estou gestando um ser humano que vai viver nesse mundo. A vida dela, para mim, será uma ficção científica inteiramente nova.
Está ficando difícil acompanhar o ritmo como as coisas mudam, e o marasmo diante da iminente destruição do planeta. A solução, ao que parece, é colocar uma venda. Passar reto. Continuar jogando nossa batalha naval particular.
Eu devia ter uns oito ou nove anos de idade quando tomei consciência de que iria morrer algum dia. A morte foi um conceito muito conhecido na infância, seja por ter perdido pessoas próximas, seja por crescer na periferia, em um lugar em que as pessoas caíam mortas na rua o tempo todo, cobertas por buracos de bala. Eu lembro muito bem da sensação de pensar “um dia serei eu”. É estranho encarar a própria passagem, mesmo que ela seja certa. É o fato concreto que não assusta, ainda que esteja no horizonte, porque há tanta vida por viver. Melhor ignorar as coisas no retrovisor, se é para frente que a gente caminha.
Acho que estamos fazendo a mesma coisa com as mudanças climáticas.
Um dos meus melhores amigos trabalha em um renomado instituto de pesquisa ambiental. O que ele diz parece também uma ficção científica: até 2030, por exemplo, é esperado que o calor em cidades como Palmas seja tão forte que as pessoas sejam obrigadas a ficar pelo menos dois ou três dias da semana em casa. Nesse futuro próximo, os governos confiscarão terras para garantir o reflorestamento. Doenças respiratórias e novos vírus serão comuns. Estamos falando de uma situação que não será vivida pelas próximas gerações, mas por nós mesmos, e daqui do lado criativo só consigo pensar em como a literatura vai absorver tanta coisa.
Como escrever sobre isso?
Nessa semana, devorei esse ótimo artigo que saiu no Suplemento Pernambuco que fala justamente sobre como a ficção nacional tem abordado o Antropoceno e as mudanças climáticas. O texto aborda o caráter especulativo dessas ficções, confronta a visão de que a literatura realista deveria se apropriar do colapso climático, e conclui: “talvez o real descrito pelo realismo já soe como ficção científica para nós”.
Para mim, como escritora, sempre foi um pouco difícil encaixar a tecnologia e o assombro atual nos meus trabalhos, embora faça literatura contemporânea. O motivo é que essas tecnologias evoluem com uma velocidade assombrosa. No Apague a luz se for chorar, meu primeiro romance, um dos personagens usa bastante o Facebook, uma rede agora já datada. No Como se fosse um monstro, apesar de grande parte da história se passar nos anos 1990, o WhatsApp é citado aqui e ali. Nunca fui muito além disso. O que agora é um desafio pessoal e uma prioridade.
Admiro autores que conseguem fazer isso bem, o que significa que quero aprender a fazer. Sally Rooney, por exemplo, é mestre em refletir esse desconforto contemporâneo. Em seu “A Casa de Doces”, Jennifer Egan imagina um cenário tecnológico ainda mais absurdo em que o download de consciências é um produto, e não causa estranhamento. Daniel Galera também tem refletido sobre isso, e o Deus das Avencas não deve ser o único resultado. A questão é que qualquer coisa agora parece possível e levemente distópica. Inteligências artificiais criam, escrevem e ensaiam arte. Bilionários assumem e destroem redes sociais. Terroristas combinam massacres em creches pela internet. Enquanto isso, o planeta reage, ameaçando todas as formas de vida, inclusive essa que tentamos tanto imitar.
Talvez a ficção científica seja o gênero mais realista e possível de escrever, nesse momento. Talvez eu também escreva sobre isso.
Nossa, tuas palavras bateram em cheio aqui. Quase fui jornalista justamente pela parte de poder perguntar as coisas (e que bonito o depoimento das mulheres bonitas, mas brilhantes na memória que as bombas). Depois, meu grifo mental à matéria do André foi bem neste trecho. Por fim, o final do teu texto. Obrigada, Fabi! 💚
Eu gosto de como a Maja Lunde aborda a crise climática nos livros dela, talvez eles possam te interessar ;)