As minhas amigas voltam e meia se assombram, principalmente as que não têm filhos, ao me ver tão operante em um terreno conhecido. Escrevendo livro, lançando antologia, divulgando newsletter, lendo quinhentos livros por semana, bolando ideias, isso tudo apesar de grávida, apesar de mãe. Como é que eu consigo? Onde é que eu arranjo tempo para essas coisas? Costumo responder com um gracejo, brinco que é porque eu não durmo, e as madrugadas picotadas esticam a dimensão do tempo. Mas essa não é a verdade. Quero dizer, é verdade que não durmo. O espaço que encontro para ler e escrever, no entanto, independe disso. Como eu consigo escrever? A resposta, talvez, seja outra pergunta: como é que eu não conseguiria?
Desde que tomei consciência da vida entendi que as pessoas fazem o que podem para se distrair da morte. Na ausência de sentido, inventa-se um. Aquilo que alguns chamam de hobby, outros de interesse pessoal, eu prefiro chamar de coisinha. Todo mundo tem a sua coisinha, uma fatia do mundo para arrancar e apreciar enquanto o coração bate. Alguns investem no esporte, na academia, no cross fit. Tem a turma da música, do cinema, das terapias alternativas, da bicicleta, do dinheiro, do álcool, da balada. Gosto quando os interesses são atípicos. Tenho uma amiga viciada em tecidos (ela, que é formada em moda, não pode passar perto de uma loja). Meu marido é obcecado em assistir a jogos de xadrez no Youtube. Ele quase não joga, só gosta mesmo de assistir. Horas e horas gastas em atividades que talvez fossem consideradas improdutivas, se não produzissem sanidade. É o que a gente faz para sobreviver.
Veja bem, há uma porção de coisas que não faço. Até gostaria, mas não faço. Não viajo com muita frequência, não vou muito a restaurantes ou festas, se fiz atividade física isso ficou no passado. Os eventos sociais são restritos, não durmo, não jogo videogame, e raramente faço as unhas. Desde que embarcamos na decisão de procriar, eu e meu marido passamos muitas horas dentro de casa, a sorte é que gostamos um do outro. Entre o tempo que preciso dedicar a ganhar dinheiro e cuidar da minha filha (em breve filhas, um plural que ainda me assusta), sobra pouco espaço, aquele que as pessoas sempre dizem que a mãe precisa reservar para si mesma, para não coringar, para ser uma mãe melhor. Acontece que a minha coisinha é a literatura. Se eu tenho alguma lasca para arrancar do tempo, eu vou usar para escrever. Se tenho uma pausa, qualquer pausa – café, almoço, fazer o número dois – eu vou ler um livro que me interessa.
Na primeira vez em que engravidei, tive de fato medo de nunca mais conseguir ser eu de novo. Um medo infundado. Não acreditem naqueles que dizem que ter filhos é se perder, a maternidade transforma sem deformar. Quero dizer, é mesmo um trabalho hercúleo, a coisa mais difícil que já fiz na minha vida, e é verdade que se sigo aqui em pé, fazendo o de sempre, é funcionando na capacidade máxima. O maior presente que eu posso deixar para minhas filhas, no entanto, é mostrar que uma mulher pode ter muitas dimensões. Quero que elas saibam e tenham orgulho de terem vindo de uma mãe artista, uma mãe que nunca abandonou o que gostava, e torço para que elas também encontrem um universo para chamar de casa. Não deixei de querer escrever depois de cruzar a fronteira de mãe. Pelo contrário, na verdade. Eu nunca quis tanto escrever. Nunca precisei tanto disso.
Claro que as minhas circunstâncias permitem que seja assim, e reconheço meus privilégios. Não tenho uma rede de apoio muito presente, mas posso pagar por ajuda. Tenho um companheiro responsável e proativo, com quem divido as responsabilidades. Nesse sentido, me dói o coração saber que há mães que se desdobram muito mais do que eu. Penso nas mães solo, nas mães atípicas. Nas mães que não têm a possibilidade de trabalhar de casa, e que enfrentam muitas horas longe de seus filhos, em conduções lotadas. A minha vida, na verdade, é fácil.
A Fabi de trinta e três anos também é incrivelmente grata à Fabi de dez e à Fabi de vinte e dois, que já sabiam e queriam tanto ser escritoras que tentaram desesperadamente fazer com que isso fosse possível. Ninguém precisa transformar seus interesses em uma profissão, isso na verdade nem é aconselhável, mas é fato que assumir a alcunha de escritora me ajuda a dedicar mais tempo para isso. Não sobrevivo de literatura, ainda não ganho dinheiro o suficiente para isso, mas boa parte da minha renda já vem das coisas que escrevi e de serviços relacionados. Toda vez que pago algum boleto com dinheiro de livro, o dinheiro mais precioso que ganho, sinto que estou no caminho certo.
Sou uma grande incentivadora de que as pessoas escrevam, seja para realizar o sonho de “publicar um livro” ou simplesmente para se expressar. Fico brava e triste quando vejo pessoas incrivelmente talentosas reprimindo palavras por medo, medo do resultado, ou de enfrentar as partes difíceis que vêm depois.
Ninguém precisa de mais livro ruim no mundo, ou de mais textos meia boca, ninguém vai ler, o mundo está acabando mesmo, de que serve isso tudo? Resmungam as pessoinhas amargas. Pois é com muita sinceridade que eu respondo: a gente precisa. Se ler e escrever é a sua coisinha, recomendo que não deixe de lado, sob pena de ter que encarar o vazio, o bafo pesado da existência crua, aquele lugar que é frio, estático, e onde nenhum desejo encontra raiz. Fazer isso, honrar o que gosta, também é uma forma de não se abandonar.
Fabi, toda vez que você escreve sobre Escrita, nasce um novo escritor em algum lugar do mundo.
Por favor, continue nos brindando com suas reflexões e dicas sobre essa arte. Por aqui, continuarei me metendo em sprints de escrita para tentar colocá-las em prática.
Muita luz pra ti!
Amo seus textos e cada vez mais me sinto exatamente como você descreveu: escrever para mim é tão necessário quanto respirar. Ah, e a sua frase de que suas filhas vão se orgulhar de você por não ter desistido é maravilhosa e muito real. Aconteceu comigo. Minhas filhas (são quatro mulheres, hoje todas adultas) têm muito orgulho de mim e eu delas. Tudo porque a gente aprendeu a respeitar as escolhas uma da outra. Enfim, todas nós temos coisinhas, que na realidade são coisonas que traçam o nosso caminho. Um viva a todas elas!! beijoka.