A primeira vez em que tentei escrever um livro foi aos onze anos. Eu tinha acabado de ler o primeiro volume de Harry Potter e queria desesperadamente criar algo parecido. Acho que minha obsessão começou a partir daí. Eu usava caderninhos baratos, daqueles de arame, ou brochuras promocionais da Tilibra, me esforçando ao máximo para que a letra ficasse legível, caprichando no corretivo quando errava. Escrevi vários arremedos de histórias, algumas cheguei a terminar. Uma das minhas preferidas era sobre uma casa mal-assombrada por um monstro que aterrorizava as pessoas com seus maiores medos, chamada O mestre das ilusões (pelo menos com títulos sempre fui muito boa). Também escrevi uma paródia literária de Top Gun, embalada pelo sucesso que o filme fazia nos anos 1990, e a história de um louco maníaco que criava bonecos vodus de corpos humanos (Fantoches vivos). Para além do fato de que eu era uma criança criativa e perturbada, escrever livros sempre foi minha atividade preferida. Aos trinta e três anos, continua sendo. Só que dessa vez eu tenho mais consciência do quanto é difícil.
Sou uma pessoa crítica. Quando leio romances nacionais, por exemplo, é difícil me desvencilhar desse olhar clínico de quem trabalha na cozinha. Ao mesmo tempo, contudo, tenho uma imensa solidariedade com quem escreve e publica seu romance, e mais solidariedade ainda se for inteiramente ficcional. Gosto muito de apreciar livros de estreia, de aplaudir o esforço inicial, mesmo que o resultado não saia tão bom. É preciso ter muita coragem para vestir a camisa da própria criatividade. Eu celebro quem consegue fazer isso.
É espantosa a quantidade de escritores de ficção enrustidos que encontro por aí. Já contei aqui que volta e meia as pessoas me puxam no canto para segredar que alimentam essa vontade. Ninguém tem vergonha de dizer que é jornalista, advogado ou professor universitário, por exemplo, mas assumir que inventa pessoas é só no off. Eu entendo, porque já estive nesse armário literário. Meu trabalho é encorajar as pessoas a saírem dele. Tudo bem se a sua primeira história não sair tão boa. Tudo bem se você fracassar um pouco. O que importa é continuar melhorando. Ninguém exige que os jornalistas ou advogados já saiam da faculdade qualificados para trabalhar no maior jornal, ser analista político ou virar sócio de uma grande firma. No meio literário, como em tudo na vida, o progresso acompanha o tempo.
O que eu detesto, contudo, são os engenheiros de obra pronta. Pessoas que acumulam dedos para criticar o trabalho ficcional dos outros. Que se julgam especialistas em escrita, embora nunca tenham escrito nada. Não estou falando aqui, obviamente, das pessoas que são especialistas em leitura, de quem estuda literatura e escreve crítica profissionalmente. A crítica é fundamental, e eu a defendo mais do que ninguém. Estou me referindo aos pretensos escritores de ficção que, sem saírem do armário, adoram criticar o trabalho de quem está no mundo há muito tempo. Não aqueles que leem algo e dizem “acho que isso aqui podia melhorar”, mas quem lê e diz “acho que eu faria melhor”.
Quando acho um livro muito ruim, de fato penso que faria melhor, e não falo isso com arrogância, mas sim com a confiança de quem já tentou. Tenho um olhar extremamente criterioso para meus próprios textos e uma leitora beta fundamental (vou falar mais sobre leitores beta na própria edição para assinantes pagos, assinem aqui!). Só evoluí o meu trabalho porque me coloquei à prova, e sigo aceitando todas as dicas para melhorar ainda mais. Por isso, quando encontro algo abaixo do que eu sei fazer, do que aprendi a fazer, reconheço.
Quem não tenta, contudo, não tem aval para achar que sabe fazer melhor. Porque escrever livro de ficção é uma coisa amaldiçoada: parece fácil, mas não é. Muitos impasses vão aparecendo e nas primeiras tentativas o amadorismo salta aos olhos. É normal. Ninguém nasce gênio, tirando raríssimas exceções. A ficção tem essa coisa horrorosa que é o fato de existir só dentro da nossa cabeça. Podemos pesquisar coisas que ajudem a levar o projeto adiante, podemos ler milhares de livros de referência (recomendo que leiam, aliás). Mas, na hora do vamos ver, ninguém vai estar lá. É você contra o papel em branco. Um terror.
Acho que vou mandar fazer uma camiseta: escrever não é vergonhoso.
Não é preciso ter medo de começar.
Só quem começa vai entender o drama, mas é o drama que impulsiona a ir além.
Antes de ir embora...
O Brasil inteiro foi mobilizado pela tragédia das inundações no Rio Grande do Sul. Todo mundo foi capaz de se comover com as imagens, os relatos orais, mas existe algo que só as vítimas escritoras são capazes de fazer: narrar os detalhes, agarrar a memória do desespero com as palavras. A Julia Dantas, grande escritora que é, fez isso lindamente nessa semana, em um texto que deixa o coração oco por não conseguirmos fazer muito mais. Se você ainda não leu, recomendo que leiam.
Nós que escrevemos e vivemos de cultura respiramos em comunidade. E, como toda comunidade, também precisamos ajudar os nossos. Se alguém estiver buscando escritores fortemente atingidos para ajudar, a Tali Grass é uma ilustradora e quadrinista que perdeu tudo. Você pode ajudá-la a recomeçar por meio dessa vakinha, ou enviando qualquer valor pelo PIX talitagrass@gmail.com.
A Livraria Taverna, que é simplesmente uma das livrarias mais lindas do país e que apoia escritores nacionais como ninguém, também foi atingida e precisa de ajuda. Se você puder doar, doe por meio do PIX: livrariataverna@gmail.com
Serviços
Para quem por acaso não viu, abri novas vagas para leitura crítica de romances e livros de contos, além de mentoria. Se você quer a opinião profissional sobre algo que escreveu ou ajuda para desenvolver um projeto, me mande um e-mail: fabiane.c.guimaraes@gmail.com. Já estou quase fechando a agenda de novo, então corra.
Seu texto é tão limpo e maravilhoso que dá vontade de abrir os meus e começar a editar! E deu saudades das minhas aulas de redação na faculdade de jornalismo. É tão bom ver o texto bom ficando pronto.
ler sua news é sempre um abraço 💜