Um dos meus livros favoritos da vida é um pequeno compêndio filosófico chamado Sonhos de Einstein. Escrito pelo físico e romancista Alan Lightman, o livreto utiliza o próprio Einstein como personagem para realizar um exercício imaginativo – criativo ao extremo – sobre outras formas de experimentar e enxergar o tempo. Essas “teorias” ricas em reflexões existencialistas são quase como contos bem curtinhos. Em um dos capítulos, por exemplo, o autor imagina como seria se a vida das pessoas durasse apenas um dia ou uma estação do ano (pessoas nascidas no verão teriam habilidades e profissões diferentes das pessoas do inverno, pessoas nascidas durante o dia seriam diferentes da noite, etc). Em outra hipótese, o tempo é experimentado diferente conforme a altitude, o que faz com que cidadãos ambicionem construir casas cada vez mais altas, de forma a não envelhecerem muito rápido. Por aí deu para sacar a ideia, né? É genial.
O meu capítulo favorito, no entanto, é aquele em que o autor imagina o tempo como uma dimensão física, que pode ser percorrida com o corpo. Nesse mundo, é possível tanto ficar parado no mesmo lugar, quanto ir para longe. O grande perigo de avançar, no entanto, é perder o controle da corrida e ir muito rápido. Uma personagem adolescente, deprimida com o divórcio dos pais, resolve deslizar no tempo para passar por aquele sofrimento logo, mas não se dá conta que correu demais, e quando percebe tem cinquenta anos e não se lembra da maior parte de sua vida. É uma das teorias mais tristes e fortes do livro. Penso nela com muita frequência.
Não sei se é porque estou grávida, e a gravidez é uma fábrica de tempo, mas nos últimos dias não paro de refletir sobre o quanto tenho dificuldades de aceitar a realidade presente e as dificuldades de cada fase. Estou sempre pensando no depois. É muito cansativo viver no futuro – e eu sempre fui uma pessoa de futuro, talvez porque o passado não tenha sido muito gentil. Quero dizer, fui uma criança feliz, tive uma infância muito boa e até me pego olhando com nostalgia para a juventude, mas nem em um milhão de anos desejaria voltar. A adolescência foi um período aterrorizante, e aos vinte anos eu era um porre. Esbaldava colágeno e uma barriguinha chapada, conseguia beber por vários dias consecutivos sem sofrer de ressaca monstruosa? Sim. Mas, do que adiantava, se eu não sabia o meu valor, não percebia a minha beleza, nem reconhecia o meu potencial? Eu era miserável e infeliz. Eu gosto mesmo é da maturidade e suas diversas interpretações do mundo. Estou amando envelhecer, criar uma família, melhorar minhas habilidades culinárias, aumentar meu repertório cultural e estético. Vou ser uma ótima velha.
Ainda me irrito, no entanto, por continuar apressada. Ainda reconheço em mim a ânsia daquela menina irritante de vinte anos que queria tanto dar certo como escritora. Um dos meus objetivos de vida é deixar de querer tanto, esvaziar a minha vida desses desejos que me impedem de viver o agora. Não quero ser como a personagem daquele conto, pulando as etapas desconfortáveis da vida, sob o risco de ser incapaz de reconhecer o caminho percorrido.
A verdade é que, quando você quer demais alguma coisa, todo e qualquer progresso se torna invisível. É muito fácil cair na tentação de não enxergar tudo que já foi vivido, quando comparado ao que se quer viver. No que se trata de uma carreira literária, isso é ainda mais forte. Escritores são criaturas ansiosas, faz parte do nosso software, o que me parece uma contradição enorme da natureza, diante do enorme desafio que temos pela frente. Ainda me lembro, por exemplo, de quando o sonho da minha vida era publicar um livro. Quando recebi no e-mail a oferta de publicação, não foi como eu pensava: digo, não choveram fogos de artifício, o mundo ao meu redor não mudou, não gritei de forma entusiasmada, sequer comemorei (estava no trabalho, precisava entregar uma matéria). Fiquei feliz e entusiasmada, sim. Mas aquele marco que eu queria tanto atingir de repente pareceu pequeno e mixuruca em comparação a tudo que viria. Antes mesmo de assinar o contrato, eu já estava pensando nas próximas etapas.
Escrever tem dessas. A gente se pega pensando nos estágios seguintes com uma obsessão quase mecânica. Concluir um livro que seja bom. Achar uma editora ou levar um prêmio. Publicar o livro. Fazer sucesso com o livro. Quando uma ou outra coisa não sai no tempo idealizado, o castelo desmorona. Todo mundo se sente fracassado e desiludido. Não há vitória que sustente um espírito assim. É por isso que estou tentando melhorar.
Nessa de tentar avaliar o meu progresso – avaliar com carinho – percebi que já fui muito mais longe do que esperava. Aparecer entre os dez finalistas do Jabuti, nesse ano, me deu a dimensão disso (me falaram que eu tenho que parar de dizer semifinalista e falar logo que sou finalista). Mesmo que não tenha ido para os finalmentes, outro dia me dei conta de um detalhe como quem se dá conta da própria altura: tenho quase certeza que fui a finalista mais jovem entre os concorrentes da categoria romance literário. Parece só uma bobagem, mas isso me fez perceber a abundância do tempo de uma maneira diferente. Acho que ser tão insuportável aos vinte anos funcionou para alguma coisa, afinal de contas. Ainda bem que não me deram o poder de avançar: eu vivi a agonia da rejeição, escrevi de forma obsessiva até melhorar a minha escrita, e a experiência que eu ganhei tem se provado útil e necessária agora. Sei o que posso fazer. Sei como fazer. Ainda tenho muito para melhorar, mas é que agora parece mais fácil.
O aperfeiçoamento artístico passa, necessariamente, pela experiência, é por isso que é comum que pessoas mais longevas sejam artistas melhores. Não que eu não acredite na genialidade dos jovens, a literatura está cheia de exemplos para provar. Casos assim, no entanto, são mais raros. O comum é que a gente aprenda com o tempo. Que ele seja o artesão dos nossos resultados. Quem começa cedo leva vantagem, sim. É por isso que as bailarinas, os atletas olímpicos e outros artistas do corpo são cultivados desde criança. Por que seria diferente com os escritores? Pena que não existe academia para incentivar o nosso cérebro de histórias. Pena que o país não lê, que as escolas não querem que leiam. Às vezes eu penso. Se eu cheguei aqui na força do ódio, dependendo dos livros que minha mãe encomendava na revistinha da Avon (porque não tinha livraria na cidade, nem acesso à internet), imagina onde eu não estaria se fosse diferente?
Avaliar o progresso tem a ver com respeitar o caminho. Sempre vai ter alguém que parece estar em situação melhor, mas eles estão correndo nas pistas deles, com seus próprios desafios – e, acredite, até a ausência de obstáculos é um grande desafio: pode fazer uma pessoa achar que o percurso será sempre suave, a ponto de não encontrar motivos para seguir em frente. Eu não troco os esforços da minha mãe por nada. Ela nem entendia muito bem o que estava acontecendo dentro de mim, com aquela mania de inventar histórias e falar sozinha, mas entendeu que era importante. Valeu a pena, né? — diz ela, com lágrimas nos olhos, hoje em dia. Eu já dei um baita orgulho para os meus velhos. Sei que sim.
A vida só existe por causa do tempo, e ele sabe a melhor maneira de existir. Não dá para queimar etapas. É preciso se acolher, também, nas limitações e desvantagens. Enxergar a dor e a raiva como partes de um processo. Não existe igualdade ou justiça, não é esse o mundo (ainda!). O agora e suas tantas texturas parece ser um bom lugar, eu quero fazer minha casa aqui, e ainda que meus sonhos continuem compridos e grandiosos, não estou com pressa, porque também não quero perder nada.
És um senhor tão bonito!
Esse era o texto que eu precisava hoje. Obrigada Fabi ❤️