Há dezessete dias sou mãe de uma menina cheia de pedaços meus. Uma boca, um queixo, um olhar. Assim que a coloquei para fora fui reconhecendo as metades e pude atestar, com uma certeza incrédula: é minha mesmo. É como ir me vendo em outro corpo, um corpo minúsculo que ainda precisa aprender sobre tudo e só vê segurança no cheiro do meu peito. Longe de mim romantizar a maternidade, até escrevi um livro que é a antítese disso, mas é curioso como essa experiência me transformou em tão pouco tempo, inclusive criativamente. Já escrevi aqui na newsletter sobre o medo que tenho de perder a vontade de escrever, e imaginei que o temido puerpério tiraria isso de mim por algum tempo. Eu não poderia estar mais enganada. Meus dias têm sido muito cansativos, sim. E bem aterrorizantes, eu diria. Não tenho dormido e vivo com medo, mas não só continuo muito escritora, como quero muito escrever sobre todos esses absurdos. Parece que acessei uma parte alienígena de mim, algo tão diferente que me fará uma escritora melhor.
A Adélia Prado tem esse poema que diz: “às vezes Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo”. Reconheço o sentimento, porque muitas vezes na vida perdi a poesia, até mesmo durante a gravidez, um processo que talvez eu tenha achado mais difícil que o maternar. É que a maternidade, com todas as suas complexidades e terrores, trouxe tanto sentimento. Sinto tanta coisa nova que tenho vontade de me livrar de tudo que vinha escrevendo até então. Só não deletei minha última tentativa de romance porque tenho um acordo comigo mesma de não fazer isso. Tudo parece superficial e falso, produto de uma outra vida. Agora vejo poesia em dobro e quero mandar notícias desse brand new world, como se fosse sobrevivente de uma expedição ou de um naufrágio em águas abertas. Um nascimento é de certa forma o lado complementar da morte, por isso dizem que as pessoas que enfrentam a morte têm essa mesma epifania. A realidade vai sendo lavada, revelando uma nova camada por baixo da tinta, e de repente nada parece como antes, porque de fato não é.
Isabel, minha filha, nasceu com o sangue diferente do meu. Provavelmente não será a única diferença entre nós duas – como uma boa mãe millennial, já na maternidade providenciei seu mapa astral, verificando que ela, uma virginiana com ascendente em gêmeos, terá uma energia muito menos incendiária que a minha, de leonina com ascendente em leão. Nossa incompatibilidade sanguínea resultou em icterícia, o famoso amarelão, que no caso dela veio um pouco mais grave. Ficamos internadas em dois hospitais diferentes, e ainda não nos livramos do problema. Enquanto escrevo, vigio o tom de sua pele, que para minha tristeza continua meio ocre. Um filho, descobri, é um estado de sítio. Eu me sinto um país permanentemente em alerta. Só voltarei a descansar quando ela estiver melhor. Enquanto isso eu a vigio, muito atenta, com todas as sirenes preparadas para gritar por ajuda, ajuda essa que às vezes vem dos lugares mais inesperados.
Léxico familiar
Ainda no hospital, em uma das vezes em que Isabel precisou tirar sangue, a enfermeira não conseguiu achar sua veia. Metia a agulha, espetava, e não encontrava um fluxo. Com o corpinho retorcido de incompreensão, meu bebê chorava, e não tive como não chorar junto. Do tanto que comecei a chorar, deram um tempo para que eu – e não ela – me recuperasse. Ficamos as duas abraçadas no banquinho do laboratório, ela reconfortada pelo peito, eu ainda em prantos. É assim mesmo – ouvi a enfermeira comentar com uma colega. As mães choram.
As mães choram.
É uma boa definição, eu acho.
Nesse processo de virar uma mãe que chora me agarrei muitas vezes à linguagem, o fio condutor da minha vida, e mais do que nunca percebi como a língua portuguesa é bonita, é uma língua feita para traduzir espantos assim. Nas últimas semanas de gravidez muita gente desejou que eu tivesse uma boa hora, uma expressão maravilhosa cuja origem não consegui rastrear, mesmo depois de vasculhar todos os cantos da internet. Também me perguntavam quando eu iria ganhar a Isabel, como se ela fosse um bilhete premiado da loteria. Meu pai veio me dizer ainda que, no interior de onde viemos, chamam o amarelo da minha filha de tiriça, e eu fiquei me perguntando se ele consegue enxergar que essa é uma derivação fonética de icterícia. Várias vezes me recomendaram o banho de chá da erva picão, algo que os antigos faziam. Tenho escutado muito falar nos antigos, aliás, ou no povo antigo. Ter um bebê, ao que parece, é uma coisa que conecta as pessoas aos seus ancestrais.
Estou dando o banho de picão. Não tivemos uma melhora tão significativa, mas eu acredito em quem veio antes. Também acredito na palavra, a dita e a escrita, e no choro. Estou ansiosa para saber da ficção que sairá daqui, dessa nova alma que eu ganhei quando fabriquei a dela. Não significa que escreverei sobre maternidade. Recentemente, alguém perguntou se eu mudaria algo no Como se fosse um monstro, agora que sei o que é ser mãe. E eu respondi que não, o que é verdade. Acho que esse nunca foi um livro sobre a experiência da maternidade em si. O Monstro é um livro sobre escolhas, sobre como as mulheres carregam a culpa pelas suas, e sobre como o processo de gestar é complexo e jamais definitivo. Maternidade é outra coisa, eu já sabia disso quando escrevi. Não necessariamente escreverei a respeito agora, mas com certeza terei assuntos mais frescos para tratar. Não sou mais aquela outra. Ainda bem.
Fabiane! coisa bom te ver assim, cheia de poesia :)
"as mães choram" dá um bom título de livro, sei lá. só dizendo aqui. hehe
abraço e melhoras para Isabel e sua tiriça ❤️
Que texto! E como é bonito esse portal que se abre com a maternidade, né? Me surpreendi muito no puerpério, chorar com as dores e as belezas do mundo.