Nos últimos dias, peguei para ler Ou Ou, sequência de A idiota – livro que gostei muito. Adoro a escrita da Elif Batuman, e foi com alguma tristeza que precisei admitir que esse segundo romance da série não funcionou comigo. Ainda me lembro de quem eu era quando li A idiota: uma mulher de quase trinta anos atravessando a pandemia em uma casa grande e confortável, com um quintal generoso, sem bebês e maiores obrigações adultas, alguém que se identificava, em certa medida, com a personagem universitária em processo de descoberta. Não tenho problema em deixar livros pela metade, exceto quando quero muito gostar deles. Foi doloroso abandonar Ou ou porque, de certa forma, me senti abandonando a minha juventude. Já não tenho a menor paciência para ler sobre os dramas da Selin, essa universitária em crescimento, porque agora cresci de um jeito mais definitivo e a vida que se embaralha dentro de mim busca por investigações diferentes. Não há nada de errado com o livro, é claro. Sou eu que preciso de outras histórias.
Exceto nos casos em que preciso ler a trabalho, toda a literatura que consumo tem inclinações pessoais. Pode ser algo relacionado àquilo que ando escrevendo ou querendo escrever, pode ser pesquisa empírica, uma busca de conexão com os personagens ou simplesmente reflexos de um humor geral. Nunca li tanta ficção científica quanto na pandemia, por exemplo, porque a sensação de estar vivendo uma daquelas histórias era forte e irresistível demais. Pelo menos no meu caso, ler é também uma forma de processar o mundo e cada pequeno estágio dessa experiência maluca de existir. Se alguma coisa não é para mim naquele momento, vou saber reconhecer.
Acho que trazer essa perspectiva para o outro lado do balcão pode conferir mais leveza ao processo de escrita, porque toda pessoa que escreve volta e meia se depara com a angústia de não encontrar leitores, de não saber se alguém vai gostar. Há quem cometa o equívoco de pensar em público-alvo, quando é impossível escarafunchar o coração de um leitor. Nós, escritores, nunca sabemos e nem temos como saber como e quando a mensagem será recebida do outro lado. Devemos nos contentar em funcionar no modo satélite, rebatendo as ondas que surgem sem pensar em quem vai conseguir se conectar. Talvez a sua história sobre uma mulher em fuga comova um tiozinho de meia idade em processo de divórcio. Talvez o seu livro sobre encarar a morte chegue para quem acabou de perder alguém. Como no belíssimo livro do Markus Zusak, não somos apenas os mensageiros, somos um pouco a própria mensagem.
Não considero uma ofensa quando alguém não gosta do meu trabalho. Acho que é impossível agradar todo mundo, e se o romance que escrevi não ressoou, a culpa não é minha, nem do leitor. Em algum outro canto haverá quem entenda. Claro que, do ponto de vista mercadológico, o carneiro de ouro das editoras é sempre aquele romance capaz de atingir uma massa considerável: um livro palatável, mas virtuoso; bonitinho, porém interessante. Livros que falem sobre o agora, que retratem questões urgentes, atacando as fronteiras do pensamento moderno em linguagem acessível. Como eu já disse várias vezes nesta newsletter, no entanto, não acredito em escrever tentando fabricar um romance ideal. O motivo é que é simplesmente impossível fazer algo verdadeiro olhando apenas para fora.
Já vi muitos romances encomendados fracassarem por falta de apelo. Já me decepcionei incontáveis vezes ao abrir modelos de virtude sem alma. Gosto mais de quem escreve com coragem, sem se preocupar com a recepção, os artistas que mais admiro são os que estão ali falando da própria obsessão, na esperança miúda de que encontrem destinatário. No bom e velho jargão popular, alguém que se ocupa com o próprio rolê. Quando você coloca suas loucuras para jogo, é muito mais provável que alguém se identifique.
Não sou fã de Doctor Who, mas amo o episódio em que Van Gogh é transportado e tem a oportunidade de olhar as pessoas reagindo a suas obras hoje (se você nunca viu, tem um pedacinho aqui). É comovente fazer o exercício de imaginar um artista recebendo o reconhecimento que nunca teve em vida. Eu choro toda vez que vejo esse vídeo, porque além de lindo, também considero um lembrete de que o conhecimento do outro lado talvez nunca venha, e criar independente da reação. Escrever não obedece a uma linha cronológica, porque as palavras sobrevivem fora do tempo, e dessa forma também podem falar ao futuro.
A arte é a única forma de enganar o tempo.
Nós também sabemos viajar, a diferença é que não vamos saber disso.
Antes de ir...
Nos dias 4, 11, 18 e 25 de setembro, toda quarta-feira à noite, vou ministrar um curso muito especial na Casa inventada, focando exclusivamente em desenvolver a voz narrativa. Durante o laboratório, vamos estudar modelos de primeira, segunda e terceira pessoa na literatura contemporânea brasileira, e teremos um mega exercício na última aula para soltar a mão e praticar. As inscrições estão abertas aqui e temos apenas 15 vagas restantes.
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Leitor não é audiência, e não sei se o leitor daqui é, mas falando em audiência posso dizer que a tua aqui é cativa. Acho o melhor Substack sobre escrita entre os que acompanho.
Adorei o texto, as relações com nossas mudanças e como crescer é também perceber que não somos os mesmos de tempos atrás e também (e que bom!) que nossos gostos e interesses mudam. O que fica é a nostalgia e a lembrança do que costumávamos gostar. Acontece muito com filmes que vimos tempos atrás e ao revê-los agora, timidamente nos perguntamos porque gostávamos tanto. Nunca assisti Dr. Who, achei lindo esse trecho! Vou compartilhar esse papo por aqui :)