Leitores queridos que por aqui ainda restam,
Preciso pedir desculpas pela ausência. Quando criei a newsletter, sabia que seria um desafio manter o ritmo. Sou uma pessoa inconstante, indisciplinada, que nunca conseguiu manter sequer um diário. Em minha defesa, preciso dizer que foi uma questão de natureza maior. O novo ano chegou me atropelando com meus próprios planos, desfazendo todas as minhas certezas (até as imaginárias). Estive muito indisposta, muito doente, muito cansada. Tive medo. Tenho tido muito medo e ansiedade. O meu corpo pediu prioridade. Surgiram muitas novidades, várias de uma vez, acho que ainda não consegui processar. Coisas felizes, no fim. Mas até para a felicidade é preciso estar preparada.
Em meio às mudanças, que são tanto metafóricas quanto concretas, eu me perguntei várias vezes quem sou eu. Se eu continuo sendo eu. Não consigo mais – não consegui até agora – escrever. Esse é o primeiro texto que faço em dias. As leituras, que sempre foram minha boia de salvação, também não adiantaram a pacificar minha cabeça. Continuei lendo, naturalmente, mas chegou a um ponto em que comecei a odiar tudo que lia. Estou mudando. A gente muda o tempo todo, mas às vezes é muito mais definitivo.
A prova de que algo muito misterioso e incoerente se instalou por aqui é que, em menos de um mês, lançarei meu segundo livro, “Como se fosse um monstro”. E não estou surtando por isso. Não como achei que estaria. Na verdade, essa é uma sensação que me acompanha desde o ano passado. Momentos aguardados com ansiedade diminuíram de tamanho na iminência de acontecer. Não é que eu não me importe com o livro novo. Deus, longe disso. É só que não estou desesperada para fazê-lo acontecer.
Escrevi um livro. Fiz o melhor que eu podia. Gostaria muito que as pessoas lessem. Mas, se elas vão gostar ou não, se será um sucesso ou um fracasso retumbante, se afundará a minha carreira ou me levará para um patamar melhor, são questões que fogem ao meu controle.
Acho que estou aprendendo um pouco mais sobre a natureza do controle.
Como deve acontecer com o segundo filho, o segundo livro é uma experiência bem diferente. Quando lancei “Apague a luz se for chorar”, há exatamente dois anos, precisei resolver meus demônios na terapia. Estrear é sempre difícil. Eu me sentia atravessando cortinas pesadas que cheiravam a poeira e angústia, só para me apresentar em um palco no qual a plateia era bem menor do que eu imaginava. Era imatura, empolgada, desesperada. Queria saber o que achariam de mim. O lado positivo disso tudo é que não levei muitas pancadas. As pessoas foram até legais, vejam só.
Agora, tenho alguns leitores que esperam o novo trabalho. Não muitos. Tenho alguma credibilidade. Não muita. O que tenho bastante, muito mais do que há dois anos, é confiança na minha identidade. Sei o que queria fazer quando comecei a escrever a história da Damiana, protagonista do “Como se fosse um monstro”. Sei que está um livro muito melhor do que o primeiro, ainda que não seja um livro perfeito.
Uma vez ouvi uma entrevista do querido Marçal Aquino em que ele diz que a gente nunca termina um livro, mas entrega de qualquer jeito. Porque é verdade isso que dizem de querer editar até o fim. De querer mudar tudo em cima da hora. Escritores têm essa mania de não se contentarem com o resultado pronto. Sempre dá para melhorar. Sempre.
Se não for assim, para quê se dar ao trabalho de escrever?
Dito isso, resolvi liberar para vocês com exclusividade o comecinho desse meu novo romance. É um começo modesto. De um romance modesto. Caso desperte alguma curiosidade, o livro está em pré-venda e será lançado em 3 de março. Vender livros na pré-venda é sempre bom porque sinaliza para a editora o interesse em um autor, dá uma moral legal (e ajuda nós, autoras com pouca mídia, a pagar logo o adiantamento).
Como eu sempre repito: fiz o melhor que podia. Mesmo que ainda não seja o melhor que posso fazer.
1.
Damiana sorria com as mãos na boca. É que meus dentes não são bons, nunca foram, e cansei de tentar arrumar, explicou já ao abrir a porta. Andava encolhida e devagarzinho, feito um passarinho, e logo foi apresentando a casa para Gabriela se ambientar. A sala era dominada por anjinhos de porcelana, enfeites de vidro, tapetes de crochê e vasos de cerâmica, e era preciso desviar com cuidado para não esbarrar em nenhuma memória. Ela perguntou se a menina queria uma água, se a viagem tinha sido boa, se não precisava descansar antes. Estou bem, Gabriela avisou, e quase pediu que ela levantasse a cortina de dedos. Quando falava daquela forma, dava a impressão de abafar um segredo, e era muito estranho ver seu rosto pela metade no cômodo escuro e cheio de bibelôs.
— Você não vai tirar foto, né? — ela perguntou, preocupada, analisando a mochila pesada que Gabriela trazia às costas.
A jornalista sacudiu a cabeça. Não era esse tipo de reportagem.
— Que bom. Não gosto de foto — suspirou, antes de enfim baixar a mão.
Gabriela a examinou atentamente, detendo-se nos olhinhos rasgados, no cabelo grisalho que crescia em redemoinhos e na pele marrom e crispada de sol como se esperasse identificar aquela marca de reconhecimento das pessoas famosas ou muito vistas. Mas se decepcionou. Damiana era uma estranha de rosto ordinário. Não entregava nem a metade dos seus mistérios.
A jornalista foi explicando que fariam a entrevista em duas partes. Naquela primeira conversa, usaria apenas um gravador e anotaria algumas coisas. Depois, nos próximos encontros, refinariam o depoimento. “O que eu quero, Damiana, é ouvir
a sua história com o máximo de detalhes possível”, resumiu, como tinha feito ao telefone. “Quero saber de tudo.”
— Você não quer saber de tudo, fia. Você não tem estômago — Damiana respondeu.
A repórter ficou calada. Não havia como se defender, porque a verdade é que ela não tinha muita fibra, muito menos coragem, e seu estômago não comportava nem mesmo os próprios traumas. Enquanto se instalavam, uma velhinha negra e corcunda apareceu, trazendo uma bandeja com café, biscoitos de queijo e rapadura. Deixou ali, sem falar nada, e saiu correndo, quase como se tivesse medo da visita. Três vira-latas vieram junto, esfregando o focinho úmido no colo de Gabriela em busca de farelos. Ela fez o carinho obrigatório nos cachorros, aproveitando para respirar um pouco. Uma enorme janela revelava o quintal e era possível ouvir de longe a algazarra dos patos e
das galinhas-d’angola.
Damiana preferiu começar por ali, a terra de onde nunca tinha saído e onde provavelmente queria morrer. Aquele era o mesmo horizonte empoeirado e sujo onde, no passado, costumava fuçar entre as pedras com uma fome de vento, crescendo selvagem e livre. Naquele mesmo quintal, fazia bonecas de espigas de milho, brincava com as irmãs mais novas — eram oito delas —, caçava coelhos e saltava os córregos, desafiando as leis físicas da tristeza.
— Tudo que eu queria, depois de mocinha, era ser alguém — Damiana confessou, dando um gole no café. — Alguém que tivesse as coisas, sabe.
— Então você aceitou fazer de tudo.
Ela segurou a mão de Gabriela bruscamente. Tinha um toque áspero, como uma árvore.
— Você tem que entender. Naquele tempo, mulher aqui nascia e morria pra isso.
Ela apontou para a própria barriga flácida, o saco de carne aposentado de seu ofício como mula da felicidade alheia.
— Minha avó teve vinte meninos. Metade morreu no meio do caminho. Você nem imagina.
Gabriela queria dizer que imaginava, sim, mas ficou calada, porque não sabia nada sobre mulheres que fabricavam crianças. Pediu que Damiana continuasse, porque esse era o propósito de sua visita. Ouvi-la, conhecer do que era feita, para logo depois transcrever a sua história em um livro. Coisa chique, ela disse. Um livro. Depois, acrescentou: A primeira mulher gostava de ler.
Gabriela ligou o gravador, discretamente posicionado na borda da mesa, sentindo-se muito importante na posição de biógrafa, ansiosa para conhecer a história pela qual tinha esperado tanto tempo para escutar. Damiana fechou os olhos, como se conseguisse recordar melhor no escuro.
— A verdade é que eu tinha talento pra ser égua parideira — começou.
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Coisa mais linda, Fabi! Não que você precise de aprovação, mas li esse trechinho e já fiquei entusiasmada pra continuar a leitura... parabéns! Encontrou um jeito incrível de começar seu romance! ♥️
adorei o trecho e já quero ler o livro!