Entre todas as coisas malucas que aconteceram comigo depois que publiquei o meu primeiro livro, “Apague a luz se for chorar”, a que mais me impressionou foi a quantidade de olhares diferentes sobre aquilo que escrevi. Participei com ansiedade de vários clubes de leitura, babando com as interpretações, e essa experiência me transformou, porque antes de publicar eu não sabia que estava escrevendo para tantas perspectivas. Em um desses clubes, uma senhora de idade fez um comentário que não consigo esquecer. Fiquei surpresa que você seja tão jovem, ela disse (mais ou menos assim). Enquanto lia o seu livro, pensei: essa menina deve ter vivido muito.
Embora eu pudesse responder àquela querida leitora que eu de fato já vivi muito, ainda que dentro da imaginação, fiquei muito grata e lisonjeada pela presunção de maturidade. Porque a verdade é que eu não tenho o menor controle das coisas que escrevo, e a sensibilidade para certos assuntos não necessariamente condizem à realidade do espírito de quem escreveu. É possível ser um escritor fantástico e uma pessoa terrível, por exemplo. Na verdade, conhecer autores pode ser uma grande decepção. Não recomendo sempre.
Acho até engraçado, mas já ouvi mais de uma vez que não pareço escrever as coisas que escrevo. Quem me conhece de perto não me vê assim. Na tal vida real, sou uma mulher solar, de vez em quando introspectiva. Tenho um grande senso de humor, adoro música sertaneja, gosto de beber, a depender da lua danço funk até o chão. A literatura é uma parte gigantesca de quem eu sou, talvez a maior, mas não estou sempre rodeada de quem lê. Não correspondo de forma alguma à imagem que se fazem de escritores como criaturas intelectuais e eruditas, porque não sou personagem, apenas um ser humano normal que escreve ficção.
Uma das maiores vantagens da literatura contemporânea brasileira é poder trocar figurinha com os autores vivíssimos, e nisso muita coisa linda é vista e compartilhada. Mas não recomendo colocar autores em um pedestal, sob o risco de que não saibam mais sair de lá. Escritores são fabricantes de realidade, de certa forma, mas não são deuses de nada. Não governam nem mesmo o destino das próprias histórias.
Uma vez, conversando com um amigo que está quase a se tornar mestre em literatura, questionei se ele achava que grandes-escritores-do-passado desconfiavam que estavam escrevendo suas obras primas no momento em que escreviam, se domavam a técnica a ponto de enxergar o caminho que estavam pavimentando, um tiro que já saía com alvo definido. Claro que não, foi o que ele me respondeu. Não é papel de um escritor tentar prever a própria grandeza.
Antes de tudo, a leitura que fazem da gente é uma consequência.
Escrever é um processo bastante solitário de escuta interna, e a verdade é que não tem como antecipar o resultado, nem do que será escrito, nem de como será lido. Também não convém produzir alguma coisa específica apenas por enxergar naquilo um potencial de plateia, para agradar a crítica, levar um prêmio bacana, ou mesmo parecer relevante. Pelo menos no meu caso, quando estou trabalhando nunca penso em construir algo que reflita sobre questões perenes da sociedade ou da vida das mulheres. Claro que existe o interesse por um tema ou vários, mas são os temas que encontram a gente, e não o contrário. Tentar ser didático e perseguir importância, forjar a importância, são coisas que apequenam qualquer artista.
É por este e outros motivos que também enxergo com muita preocupação a visão crescente de que a literatura precisa resguardar a moral e os bons costumes, que tem que fazer justiça aos perversos, ou mesmo excluí-los da conversa. Como se a lógica do algoritmo, de entregar só o que agrada e gera engajamento, se encaixasse aqui. Tive uma professora na universidade que costumava dizer, quando nos incentivava a encarar a realidade: o mundo é mau e a gente morre no final. Uma filosofia da qual me lembro muito. A literatura não só pode, como deve retratar a perversidade e o contraditório. Se não fizer isso, perde a chance de refletir a humanidade. Vira outra coisa.
Não é que eu não me preocupe com a recepção do meu trabalho, que fique claro. Uma vez no mundo, o livro deixa de ser seu. Inclusive, confesso que estou bastante ansiosa com a repercussão do meu próximo romance, “Como se fosse um monstro”. Embora seja sensível, é um livro polêmico. Ou melhor: pode ser polêmico para essa sociedade que está aí, que no último fim de semana mostrou seu pior lado nas urnas. Às vezes tenho medo de ser agredida, medo de ser cancelada, mas então me lembro que não foi para isso que comecei a escrever. Nunca foi por covardia.
Fazer literatura é um baita trabalho ingrato, que requer humildade, e implica uma exposição que deixa qualquer um vulnerável ou se achando um alecrim dourado. É bom lembrar que na maior parte das vezes, no entanto, quem escreve não tem a menor ideia do que está fazendo, até que faça. Deve ser por isso que criar é tão parecido com viver.
Reflexões excelentes sobre a escrita. Eu me senti tão acolhido por tudo que você disse, principalmente no que toca o processo <3 Que a escrita seja um experimento de criação, como a vida também deve ser. Parabéns pelo livro e pela coragem!
Precisaria enquadrar isto aqui: "É bom lembrar que na maior parte das vezes, no entanto, quem escreve não tem a menor ideia do que está fazendo, até que faça. Deve ser por isso que criar é tão parecido com viver." <3