Quando eu estava na quarta ou quinta série, a professora de artes trouxe para a sala um punhado de argila e propôs o exercício de criar esculturas. Para além desse conceito que hoje me encanta (ter uma professora de artes, como se a arte fosse assim ensinável), eu me deliciei com aquela novidade, porque era uma criança criativa. Ou melhor: adorava a ideia de ser criativa. Fiquei lá, manuseando meu punhado de lama, pensando nas dezenas de coisas que gostaria de fazer. Uma boneca artesanal. Um planeta cheio de rugas e anéis. Uma pequena cidade de ouro. Pensei tanto nas infinitas possibilidades de coisas a serem criadas que foi chegando o fim da aula e eu não tinha fabricado absolutamente nada. A cinco minutos de quase entregar uma massa amorfa, acabei fazendo uma... bola. Sim, uma bola. Um troço sem graça, pálido, que não tinha nem a dignidade de ser totalmente redondo.
Penso com frequência nesse episódio, porque ele representa a maior armadilha criativa em que caí na vida adulta, muito tempo depois de tudo: às vezes, eu simplesmente pensava demais. Tive que aprender na marra que a lógica bonita dos planejamentos não funciona comigo. Quando penso muito naquilo que quero criar, acabo não criando nada, porque me assusta a ideia de conceber um resultado antes do processo. Produzir escaletas, planejamento de capítulos e descritivo de personagens derruba minha moral. Meu negócio é fazer. Sentar e espremer o sumo da cabecinha para ver o que sai. Mas não sem partir de alguma ideia, ainda que abstrata. As melhores coisas que eu já escrevi foram fabricadas a partir de um sentimento breve, às vezes até mesmo uma imagem fragmentada, eu me vejo pescando a miragem, fabricando a pessoa-personagem, de repente escrevi o que queria, mesmo sem saber para onde ir. É a melhor forma de se perder.
Percebo que essa é uma das grandes dificuldades que outras pessoas também têm, quando começam a escrever. Materializar suas ideias e transformar o pedaço de argila em uma coisa linda. Mas o erro, com frequência, é mirar nos resultados concretos, porque aquilo que nasce incrível quase nunca germina assim. Grandes escritores (os de antes) não sabiam que estavam produzindo uma obra-prima nas primeiras linhas, nem escreviam com o objetivo de definir suas questões contemporâneas. Não é como formular uma tese. O processo funciona muito mais como uma espécie de espelho, refletindo o que existe de dentro para fora. Mas você já percebeu que o reflexo só existe a partir daquele que olha?
Hoje eu sei que não há como trabalhar em algo que ainda não se formou, e o melhor texto é aquele que está escrito. Ponto final.
Comecei esta newsletter porque ando querendo escrever sobre certas coisas que me perturbam, mas gosto da ideia de não saber para onde ir, de partir de uma paisagem imprecisa. Também gosto da ideia de discutir um pouco sobre criação literária e suas adjacências, do ponto de vista de alguém que só é feliz quando está escrevendo.
Espero que eu não desista.
Dica da vez
Um dos meus assuntos preferidos na vida é a origem da consciência e os dilemas existenciais de um ser complexo que pensa. Nesse sentido, recomendo muito o documentário “Como mudar sua mente”, produzido a partir do livro homônimo do Michael Pollan, disponível na onipresente Netflix.
No documentário, Michael investiga o uso de drogas psicodélicas no tratamento de doenças mentais, fazendo uma análise empírica do potencial dessas drogas na expansão da mente e, consequentemente, na cura. Como uma pessoa que já experimentou psicodélicos a título de uma curiosidade pessoal (espero que minha mãe não esteja lendo), eu achei interessantíssimo. Os depoimentos, apesar dos diversos backgrounds culturais, são muito semelhantes, porque existir é uma experiência comum a todo mundo, e às vezes parece que é uma experiência individual, quando é bem o contrário disso.
No fundo, os estudos de Michael Pollan abrem uma pergunta muito válida sobre a construção da realidade, que é apreendida a partir desses pequenos mecanismos de percepção. Como podemos definir o que é real, se só enxergamos aquilo que podemos sentir? E como não ser enganado pela própria percepção? Cheguei à conclusão de que ter um corpo é uma forma de se limitar, e a mente até que é uma prisão bastante convincente.
Quais são as suas tristezas de estimação?
Tristeza é uma das minhas palavras preferidas em português, junto com Ternura. São duas palavras que soam exatamente como aquilo que significam. Tristeza tem uma certa dignidade, um leve som de martírio, é uma dor discreta, quase bonita. Eu não sei vocês, mas eu tenho várias tristezas de estimação, aquelas que estão sempre comigo, porque já percebi que nunca vão deixar de estar. São esses pets que alimentam minha escrita (daí o título desta infame newsletter), roendo o pé da cadeira enquanto me atormento, não me livro delas porque sei que preciso sentir. As tristezas são mais úteis do que parecem para amolecer o caráter.
Obrigada por se inscrever e chegar até aqui.
Até a próxima.
remoer tristezas é a base de muita criação... adorei sua niusléter, fabi! acho massa esse vislumbre dos bastidores da escrita [da criação artística, em geral] q, embora tenha sim mto de introspecção, costuma ser embalado numa mistificação em torno da figura do gênio solitário.