Acabei de entregar meu livro novo para a editora, que está na fase dos retoques finais que vêm antes da preparação e diagramação. O corpo nem esfriou direito e já me vejo seduzida pela próxima história, uma história novinha em folha, que ameaça passar na frente das três tramas incompletas que aguardam na gaveta. É um mal frequente. As ideias mais novas são sempre melhores, mais interessantes, uma criança cheirando a leite com os dentes ainda por nascer. O encanto, talvez, seja justamente esse. Tudo que ainda não foi escrito vai sempre requisitar a palavra, porque na nossa cabeça é tão fácil, tão bonito, delicioso de tanta novidade. O problema é escrever. Mais do que escrever, insistir.
Tenho muito orgulho do meu segundo romance, que deve sair no comecinho de 2023. Como se fosse um monstro é um dos meus trabalhos mais maduros, e sei que não estou louca porque quem leu achou isso também. É um livro que escrevi a partir de uma ideia relâmpago, dessas que abatem a gente no meio do descanso. Lembro-me até hoje da ocasião: fevereiro de 2018, voltava de umas férias bem aproveitadas no Rio de Janeiro, ao lado do meu marido, quando esbarrei em uma reportagem da BBC sobre barrigas de aluguel. Na mesma hora consertei a postura em um dos bancos desconfortáveis do Galeão, fiquei encarando o nada, e sussurrei, apressadamente, que precisava escrever aquilo. Que eu iria escrever a vida de uma barriga de aluguel. Quatro anos depois, o livro ficou pronto. Mas não sem alguns dramas.
O que pouco se fala sobre escrever um livro é como o processo é puxado e estressante. O romance é uma maratona com alguns intervalos que podem parecer eternos. Livros levam anos para serem escritos simplesmente porque é difícil. A ideia inicial, por mais irresistível e elegante que seja, é uma faísca que ainda não aprendeu a ser fogo. As primeiras dez páginas até podem correr como o esperado, mas vai chegar o derradeiro momento em que tudo vai empacar. Você vai se duvidar. Vai querer jogar tudo no lixo, começar de novo. Pular a cerca para outra ideia. É preciso muita força de vontade para alimentar a fogueira. Escrever uma narrativa longa é um exercício de fidelidade.
Não conheço um só escritor ou escritora que não tenha um punhado de histórias incompletas, e ainda não sei direito por que alguns projetos levam a melhor sobre outros. Ou melhor, desconfio. Às vezes precisamos da ficção para aprender a viver algum capítulo específico da vida. Para entender alguma inquietação. Mais do que uma mistura de pequenos traumas, o que alguém escreve também está muito relacionado às suas próprias obsessões. Não sei se vocês sabem, mas escritores são criaturas obcecadas. Na minha experiência, a melhor forma de lidar com isso, os carrapatos do espírito, é de fato escrevendo.
Quando escrevi Apague a luz se for chorar, estava obcecada pela morte e o sentimento de crescer rápido demais. De não ter a menor ideia sobre o que eu estava fazendo. O livro reflete isso de tantas maneiras que são até incômodas para mim. Como se fosse um monstro, por outro lado, já demonstra um outro tipo de fixação. É um livro sobre a maternidade e a não maternidade. Sobre escolhas que, embora individuais, são vistas como coletivas, e como é difícil e pesado processar expectativas. São temas de grande interesse, embora eu seja tão diferente das duas personagens que são parte de mim.
De alguma forma, é extremamente possível escrever sobre alguma coisa muito pessoal sem ser biográfica, porque pessoal não é a mesma coisa que íntimo. Os bons ficcionistas são uns mentirosos muito empáticos. Eu entendo o que você está sentindo, embora eu não sinta. Eu escrevo sobre tudo que me faz pensar, coisas que se relacionam comigo, mas não refletem minha vida, porque não sou uma personagem, não faço autoficção. Não sou um homem nórdico de meia-idade narrando egocentricamente sobre minha trajetória neste pequeno planeta. Minhas obsessões são um mar de referências embrulhadas, de detalhes que acho hipnotizantes, dores que penso incuráveis, dinâmicas e conflitos que me atraem pela pura e simples artimanha de narrar, além de outras inspirações que me contagiam no meio do caminho.
Às vezes são as obsessões mais recentes, as menos óbvias, que dão o gás para ir em frente, então é válido abandonar algumas ideias em prol de outras mais urgentes. O que não é válido é desistir de todas e ter medo de trabalhar no texto pronto. O texto pronto não morde. Editar é chato e doído, mas é a única via possível. Como se fosse um monstro passou por incontáveis revisões e foi reescrito umas sete vezes vezes. Em alguns momentos cogitei seriamente desistir dele. Em outros, estive convencida de que se tratava da melhor coisa que já escrevi em muito tempo. Agora eu só sei que fiz o melhor que pude. Mesmo que ainda não seja o melhor que eu posso fazer.
É isso que significa fazer uma escolha.
And the Oscar goes to…
Quem me acompanha nas redes já sabe que meu livro, Apague a luz se for chorar, é finalista de duas categorias do Prêmio Candango de Literatura: Prêmio Brasília e Melhor Capa. Fiquei felicíssima, porque já é uma forma de reconhecimento. Torçam por mim!!
Outro ponto de vista
Enquanto ruminava o tema desta newsletter, recebi o texto de outra contemporânea refletindo sobre a mesma coisa, nessas coincidências criativas. Achei o texto ótimo. Leia aqui.
Já estou ansiosa pelo novo livro.
"Escrever uma narrativa longa é um exercício de fidelidade." Nossa, isso aqui me pegou demais. Entendi por que eu só consigo escrever contos, hahaha. Não consigo me manter fiel a uma ideia por muito tempo, sempre acabo migrando pra outras... Mas quem sabe um dia.
Já amei o nome do romance novo!