Neste ano as obras de Graciliano Ramos entram em domínio público e, se você não sabe disso ainda, é porque não deve ter visto as quinhentas mil matérias que saíram a respeito. Vou aproveitar a oportunidade para revisitar este autor que li muito na escola e não valorizei como devia. Porque o Graciliano tem uma qualidade enorme de escrever sem malabarismos. Era um sujeito que se apoiava na simplicidade como ferramenta de elegância. Nessa matéria aqui, um pesquisador comenta que o autor era obcecado por revisar os próximos textos e pedia que o filho mapeasse o excesso de “que”. Achei engraçado, porque faço a mesma coisa.
Quando se trata de escrever, persigo a elegância como objetivo final. Nem sempre sou bem-sucedida, é claro, mas gosto de pensar que estou no caminho. Um texto elegante, para mim, é aquele que desliza nos olhos, sem criar ondulações desnecessárias, ao mesmo tempo em que arranja espaço para pequenos arrebatamentos. Escrever assim simples é uma coisa dificílima de alcançar, e posso dizer estou há quase vinte anos tentando.
Cada escritor tem seus métodos e sua intenção estética, veja bem. Alguns não revisam, outros revisam de forma obsessiva (me aproximo do segundo grupo, escrevo melhor na reescrita). No meu caso, percebi que tenho alguns cacoetes, vícios que se repetem, e busco suavizar essas marcas que voltam de forma inconsciente e atrapalham a fluidez.
Aqui estão, por exemplo, alguns hábitos que sigo ao revisar meus textos:
Depois que escrevo e reescrevo, gosto de fazer uma busca geral por repetições. Acho feio quando um texto se apropria da mesma palavra ou expressão de forma exaustiva, é raro e acontece muito. Mais irritantes do que os substantivos que grudam, no entanto, são as repetições de conectivos, como o próprio “que” do Graciliano, e de conjunções com o “mas”. Também me atrapalho com o uso do mais-que-perfeito e quando vejo estou cheia de “tinha” e “havia” na mesma linha.
Quando se trata de escrita, não existem regras, e é claro que o recurso de repetições pode ser usado com intenção e valor. É a repetição inconsciente que acredito ser mais indigesta. Também não é caso de desesperar. Faz parte do trabalho de edição limpar esses excessos, porque chega uma hora que nem a gente enxerga mais a própria sujeira.
Outro dia falei em uma edição que sou preocupada com os pronomes, analogias e metáforas, já percebi que tenho queda por eles e então faço questão de me precaver. Qual o problema com as coitadas das metáforas, Fabi? Se bem-feitas, nenhum problema. O negócio é que a gente acaba exagerando, e quando menos percebe o texto está cheio de “como um...”. Hoje em dia reservo as metáforas para momentos inspirados. Nem sempre vamos alcançar descrições como a Capitu e seus olhos de ressaca, e é sábio reconhecer.
Os pronomes também entram na lista de repetições, porque é muito fácil escorregar. Quando passo o pente fino nos meus escritos, encontro tanto “ele”, “ela” e “eu” que até dói no coração. Então, faço questão de checar: esse pronome aqui é absolutamente indispensável? Sem ele, o texto continuará escorrendo sem confusão? Se sim, meto a faca.
Meter a faca, aliás, é uma coisa muito saudável. É aprendendo a cortar que a gente reconhece as gorduras que o texto tem. Nem todo mundo concorda. Como eu disse, não é uma regra. Há quem goste dos excessos. Se eles fazem sentido e estão ali com intenção, assino embaixo. Se não, é só peso morto.
Estou lendo esse livro maravilhoso da Noemi e nele ela dá uma dica que uso e assino embaixo: para escrever melhor, é preciso fugir do lugar-comum de forma geral, e uma boa forma de evitar é buscando exercitar o vocabulário. Não é para sair enchendo o texto de termos barrocos, nem sair disparando verbos desiguais a torto e a direito, e sim dar um jeito de desarranjar as palavras cotidianas, evitar as “acostumadas”, como diria o Manoel de Barros. O Manoel de Barros, para mim, é um mestre nisso de escrever bonito só desarrumando o óbvio. Com a palavra, ele mesmo:
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
(Sério, o cara tem que ser muito bom para fabricar uma frase como “fui aparelhado para gostar de passarinhos”)
(Evitar o lugar-comum, veja bem, não significa tentar escrever fazendo contorcionismo, invertendo a ordem das frases e usando construções que nem são mais usadas ao melhor estilo Michel Temer, porque aí não fica melhor, fica brega.)
Como na música, literatura também segue compassos, and it’s all about the rhythm. Em matéria de ritmo, adoro pensar no encadeamento das frases, coisa que se alcança privilegiando a pontuação. São nesses espaços construídos entre vírgulas bem posicionadas, ou mesmo no sufoco de várias palavras escritas e disparadas assim de uma vez só, que vamos aprendendo a usar o ritmo a favor da mensagem. Frase curta tem propósito. O que é longo tem uma tendência de se perder então é preciso saber economizar para não perder a atenção do leitor nesses blocos maiores de consciência. Se você usa a mesma construção várias vezes, dá para perceber. Quem é mestre nisso de contar palavras, com certeza vai notar.
Eu poderia escrever muito mais sobre minhas doidices, mas a edição está muito longa, então vou parar por aqui. Antes de ir embora, segue um aviso paroquial importante: a nossa oficina de escrita será NESTE SÁBADO, vulgo amanhã. Será um encontro delicioso, às 10h da manhã, para praticar a escrita (afinal, para refinar um texto, é preciso ESCREVER ALGUMA COISA). Meu objetivo é que seja leve, divertido e que provoque pequenas epifanias. A participação é restrita a apoiadores da news, custa só R$ 9,99 por mês, e ainda dá tempo de assinar clicando aqui.
Amanhã envio o link para os apoiadores! Apareçam, gente, não me deixem escrevendo sozinha.
Gostei muito das dicas!
Uma coisa que me também me incomoda um pouco são as repetições disfarçadas. Quando dá para sentir que na escrita inicial o escritor repetiu várias vezes a mesma palavra e depois voltou substituindo por adjetivos sem pensar muito em outras formas de construir as frases. E faço um mea culpa nesse ponto hahaha
"Não é para sair enchendo o texto de termos barrocos"
Anotando aqui 🤣