Às vezes, quando estou escrevendo, me vem à cabeça uma voz perniciosa que diz
quem você pensa que é
Não sei se é um pensamento meu ou apenas outra agressão que herdei do mundo, só sei que em algum momento da minha vida aprendi a silenciar essa pergunta. Por pura vaidade, sim, mas também por uma profunda necessidade de me adequar aos desejos da minha imaginação. Nunca fui muita coisa, a minha família também não, nós descendemos de um povo sobre o qual ninguém conta histórias. Entretanto, escrevo.
Ninguém precisa de autorização para escrever.
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No sábado faço trinta e três anos. A idade de Cristo, como gostam de cantar os locutores de bingo. Não me sinto mais velha, nem mais nova, me sinto apenas inteira. Já comemorei aniversários sentindo que vários pedaços da minha alma estavam faltando, já brindei à vida com uma enorme sensação de fracasso na língua. Deixei de alimentar esse tipo de comiseração. Acho que ser mãe contribuiu. Ando ocupada demais para pensar em ausências. Tudo está aqui.
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Não sou feliz o tempo todo, apesar de me sentir inteira. Alguém por acaso é feliz o tempo todo?
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Aos trinta e três anos, acabei de entregar o terceiro livro. Escrevi mais de dez. Quem eu pensava que era para escrever tanto e tão cedo? Resposta: clinicamente ansiosa com hiperfoco.
Ou, simplesmente, alguém que não sentia felicidade em mais nada.
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É notória a quantidade de escritores que começou a escrever tarde. Adélia Prado, por exemplo, só escreveu o primeiro aos quarenta. Nesse vídeo maravilhoso aqui, ela diz que chegava a escrever cinco poemas por dia, em um fervor tão grande, até a tampa. Agora está escrevendo seu último livro, ela conclui, e logo depois se corrige, aos risos: o último não, ai.
Gosto tanto desse vídeo que já vi várias vezes.
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Acho que algumas pessoas começam tarde porque estão ocupadas vivendo. Outras, porque acham que não são ninguém.
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Não quero nem pensar no último livro que vou escrever.
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Uma coisa real é que as pessoas podem até dividir a mesma época, mas não dividem o mesmo tempo. O tempo é individual.
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Se você não está familiarizado com a criação de um bebê, saiba que o Ministério da Saúde distribui uma cartilha de infância com alguns marcos de desenvolvimento para serem acompanhados conforme cada idade (o que permite, por exemplo, detectar atrasos que podem ser mitigados com tratamento adequado). Nas consultas rotineiras com o pediatra, ao levar a Isabel, João e eu sempre temos que responder a algumas perguntas: já consegue ficar de pé sozinha? Balbucia? Sabe imitar gestos?
Fiquei pensando que os adultos deveriam ter uma cartilha que medisse seus marcos de desenvolvimento psicológico.
Já consegue perdoar os outros? Consegue agradecer o que tem? Aprendeu a dizer não?
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Apesar de me incomodar com as primeiras rugas, me sinto mais bonita agora do que me sentia aos vinte. Muito mais confiante. É uma pena que eu não soubesse o valor que eu tinha, porque fico me questionando onde eu conseguiria ter chegado hoje se soubesse me apreciar melhor. Não guardo muitos arrependimentos, mas quando olho para trás, penso com frequência nisso: em quantas vidas perdi por achar que não merecia.
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Escrever também é uma vida que você escolhe. O bom é que pode escolher a qualquer momento.
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E quem você pensa que é?
Eu sou.
campanha pela criação da cartilha de desenvolvimento dos adultos já!!
Este texto bateu aqui dentro, ó. Só me autorizei a escrever depois dos 45. Antes, estava ocupada vivendo, sim, mas também muito ocupada com autocríticas cruéis e descabidas.