Aos vinte e dois anos, eu gostava de me fantasiar de escritora. Nessa época, morava com minha irmã em uma quitinete de trinta metros quadrados na Asa Norte. Se você conhece Brasília, sabe que essa é uma área central e culturalmente empolgante, com vários barzinhos, sebos e restaurantes. Tinha, portanto, uma vida boêmia, sem grandes compromissos exceto ir para o trabalho depois do almoço, quase sempre terminando a noite em algum boteco. Enquanto não podia mudar a realidade do meu primeiro emprego (jornalista da editoria de esportes, carteira assinada, oito horas diárias), era naquelas manhãs livres que eu me disfarçava. Acordava cedo para os padrões da minha juventude – às dez da manhã –, corria ao McDonald’s mais próximo, pedia um cappuccino médio e passava ao menos duas horas escrevendo. Escrevi um romance inteiro nas mesas de um McDonald’s, me sentindo muito intelectual, e hoje sinto saudades de como eu tinha esperança na literatura. Até hoje, para mim, o cappuccino tradicional médio tem gosto de ficção.
Ao lado de duas amigas, também gostava muito de frequentar o saudoso Beirute, um bar antigo apenas na medida do possível para uma cidade tão recente. Essas duas amigas, as duas curiosamente Marianas, também escreviam, e ali na varanda do Beirute, cercadas de garrafas de Beira Bier, alimentávamos a nossa maior ficção, que era essa de ser artista. Já falei sobre elas por aqui. Uma delas é a Mariana Vieira, chef do Conchas, um belo restaurante imaginário que serve aperitivos literários. A outra é a Mariana Lozzi, autora de um maravilhoso Mar de telhas.
Mariana, aliás, pelo visto é um nome muito comum às boas escritoras. Alguma coisa nessas sílabas, talvez;
Eu sempre soube que ser escritora era o que eu gostaria de ser. Sempre. E embora o caminho tenha sido tortuoso e muito diferente do que pensei que seria, é uma satisfação muito grande poder vestir a alcunha. O fato, no entanto, é que às vezes a realidade que existe em torno do mercado editorial acaba desanimando ou mesmo minando as possibilidades de quem gostaria de apenas escrever. Eu me refiro a todas aquelas coisas chatas que qualquer escritor enfrenta em qualquer parte do mundo (exceto, talvez, na Noruega): como pagar as contas, os royalties baixíssimos, as vendas escassas, os prêmios com os quais sonhamos e nunca somos cogitados, os eventos para os quais nunca nos convidam. Ou, para aqueles que ainda não publicaram nada, as incontáveis cartas de rejeição. A vida de quem escreve não é nada glamorosa e, no entanto, segue sendo a única vida que eu gostaria de viver. Pensando sobre isso, outro dia, cheguei à conclusão que seria impossível seguir em frente sem romancear um tanto.
É por isso que continuo indo a cafés, quando posso, com o meu notebook a tiracolo. Que tomo notas sobre meu próximo romance, que levo a sério esse meu próximo romance, e falo sobre ele como se não fosse apenas uma coisa inventada, mas uma realidade concreta, um edifício abstrato que estou construindo por cima de todas as outras variáveis. Já não sou uma jovem recém-saída da faculdade com muito mais tolerância para a lactose e mais capacidade de beber litros e litros de cerveja, mas ainda aprecio a ideia de me imaginar artista com todos os clichês possíveis, incluindo os óculos, as vestimentas e os gatos. Só abri mão, graças à Deus, dos cigarros. Minha saúde agradece.
Fiquei muito triste ao saber da passagem do Paul Auster. Gosto muito do trabalho dele e estou relendo o meu livro favorito, Noite do oráculo. Sempre invejei o estilo de vida dos personagens do Paul Auster. Aquela coisa de ser escritor em Nova York, de ter um editor, publicar livros que são lidos por muita gente, ter isso como uma profissão de verdade. Na verdade, é um sentimento comum sempre que leio esses livros com protagonistas-escritores que vêm da gringa. Eu reclamo que escrever livros protagonizados por escritores é um enorme clichê, mas secretamente sou viciada, adoro. Recentemente, me deliciei com Yellowface, que narra bem esse lifestyle com todas as suas picuinhas envolvidas. A trilogia da Rachel Cusk, começando por Esboço, me causou arrepios de prazer pelo mesmo motivo. Também li esses dias um romance nacional que tem a mesma pegada livro-protagonizado-por-escritores, e é bem delicinha: o Café Majestic, da Stephanie Sande.
Meu sonho, de verdade, seria viver dentro da ficção de um desses autores. Não precisar trabalhar em cinquenta outras coisas, dar entrevistas apenas sobre meu trabalho, participar de residências literárias, enfim, viver todo o aparato espiritual de escritores que têm a sorte de nascerem em países mais afeitos à literatura.
Existe uma versão brasileira disso, contudo, que é possível imaginar. Ela existe, especialmente, quando encontro meus colegas e amigos escritores, quando passo algumas horas na companhia dessas pessoas igualmente delulu. É quando falamos sobre nossos personagens, os livros que estamos escrevendo ou que gostaríamos de escrever, fofocamos sobre o romance do ano, quando nos deliciamos apenas com a satisfação que é inventar mundos inteiros, mesmo que a realidade seja tão pesada e pouco animadora. Nessas conversas, o leitor ou o editor não aparecem: não estamos preocupadas com a recepção dos trabalhos, sequer pensamos nessa coisa de lançar e fazer sucesso. Tudo que queremos é compartilhar os bastidores de uma espécie de energia que se retroalimenta a despeito dos meios. A energia puramente criativa.
Acho, inclusive, que precisamos de mais espaços assim, mais lugares para discutir literatura pura, sem os ruídos paralelos da lógica comercial ou mesmo política. Porque é dessa fantasia maior, afinal, que os artistas são feitos. Para poder sustentar o resto, é preciso primeiro inventar um modo de existir. E, modéstia à parte, eu sou muito boa em inventar.
Ah perfeito, compartilho desse sentimento e necessidade de ter um espaço seguro para ser artista só por ser. De sonhar alto, longe sem estratégias de marketing, sem pensamento enviesado com o mercado editorial. Já me desgasto tanto sendo escritora e batalhando um dia depois do outro pra conquistar algo financeiro com isso (já não sei mais se é independência, retorno, complemento ou sei lá o que, que quero).
“- Quem estará nas trincheiras ao teu lado?
‐ E isso importa?
‐ Mais do que a própria guerra.” <3