Divulgar um livro novo é sempre uma experiência interessante. As pessoas ficam curiosas, fazem perguntas, por que escrever sobre isso, de onde surgiu essa ideia, como você pensou nisso, e às vezes a vontade que tenho é de sair correndo e dizer não sei, não sei, não faço ideia. Quando o assunto é processo criativo, é inevitável que se procure a raiz das coisas, como se os escritores tivessem alguma clarividência sobre a materialidade da criação. Mas, pelo menos comigo, as respostas não são tão evidentes. Escrevo sobre minhas obsessões. Não sei dizer por que me obceco.
No caso do Como se fosse um monstro, meu romance recém-lançado e ainda cheirando a leite, o tema central é a maternidade. É fácil entender, por um lado, os motivos do meu interesse pelo assunto: nos últimos anos enfrentei um diagnóstico de endometriose severa e infertilidade. Minhas incursões pelo mundo pavoroso das tentativas de engravidar e seus tratamentos caríssimos criaram um enorme arquivo de traumas e observações. Foi muito difícil enfrentar uma vontade que meu corpo não comportava, ainda mais porque o medo me obrigou a confrontar e confirmar minha escolha reprodutiva. Descobri que queria muito ser mãe. E a partir dessa ausência de fertilidade entendi, mais do que nunca, as mulheres que não querem ser.
Essa minha relação paradoxal com a maternidade resultou na história de uma barriga de aluguel. Damiana, minha personagem, é uma mulher que entende a vontade alheia de ter filhos biológicos, mas não os deseja. Acho que é uma das personagens que mais gostei de escrever na vida, embora seja tão diferente de mim. Eu precisei recorrer a um laboratório para poder gestar – no momento em que escrevo essa newsletter estou grávida de quase quatro meses. Já Damiana, como ela mesma se define no livro, “tinha o corpo cheio de substâncias que favoreciam a vida”. Só não para si mesma.
Deve ser por isso que cultivo tanto carinho pela ficção, em contraponto à autoficção. É muito mais divertido escrever sobre as próprias experiências pelo olhar da imaginação. Quando comecei a criar Damiana, no entanto, não sabia que estava escrevendo um manifesto sobre o direito de escolher o que fazer com o próprio corpo. Eu só queria escrever a história daquela mulher que entrou na minha cabeça, que foi gerada a partir da minha incompetência biológica, imaginando todas as suas experiências e traumas próprios.
É óbvio que, ao escrever sobre uma obsessão, tocamos nos assuntos que interessam. Na autoria por mulheres, esses assuntos frequentemente giram sobre nossas experiências com a maternidade, a violência e a desigualdade de gênero. Não é voluntário e intencional, como uma bandeira que as mulheres erguem quando precisam escrever. É apenas o que nos acontece. Pena que acontecem tantas coisas feias.
Produzir um trabalho de ficção é muito diferente de levantar uma bandeira. As discussões que as histórias despertam só acontecem porque, uma vez escritas, essas histórias carregam a substância de quem escreveu, que é produto de seus olhares. É por isso que, ao fabular sobre os Buendía, García Marquéz escreveu um retrato da América Latina. É também por isso que, ao escolher o horror, autoras como Samanta Schweblin e Mariana Enríquez retratam tão perfeitamente a vida das mulheres latino-americanas.
Em minha opinião, escrever pensando em “cavar” um tema importante, em chamar atenção da mídia e angariar com isso um pequeno sucesso de vendas só vai resultar em romances enrijecidos e artificiais. É óbvio que os livros carregam temas e a relevância deles pode ser determinante para que um romance receba mais atenção que o outro, por exemplo. Mas esse não é um território passível de exploração forçada. Escrever um bom trabalho de ficção é muito diferente de escrever uma tese. Nunca começamos pelo problema.
Em seu ótimo livro “Sobre a escrita”, Stephen King concorda comigo:
“[...] começar com as questões e as preocupações temáticas é receita certa para má ficção. A boa ficção sempre começa com a história e progride até chegar ao tema, ela quase nunca começa com o tema e progride até chegar à história. [...]”
Sei que quero escrever sobre muitas coisas que podem parecer pertinentes e chamativas. Tenho muita vontade, por exemplo, de criar uma história sobre a crise climática, mas isso não significa que vou sair forçando a escrita de um romance sobre isso. Não. O processo precisa ser o mais natural possível. Talvez um dia surja um personagem que reflita o medo de viver em um planeta que está se esgotando. Eu que não vou procurá-lo.
Uma vez, uma pessoa que conheço usou a metáfora perfeita ao dizer que escritores são satélites. Às vezes escrevemos sobre coisas importantes e antecipamos temas que entrarão na agenda pública porque temos sensibilidade o bastante para receber as informações que o mundo envia. O que significa que você provavelmente receberá primeiro uma sensação, talvez uma ideia embrionária ou um personagem pronto. Talvez suas histórias comecem com uma pergunta: “e se tal coisa acontecesse com o mundo?”. O mais lindo a respeito das ideias é que elas surgem do nada. Depois é que o nada se traduz em muito.
Eu amo seus textos!! Tô doido pra conhecer seus livros