Outro dia descobri que o cérebro humano só se desenvolve por completo aos 25 anos. É por isso, justificam os cientistas, que as sensações anteriores a esse período surgem envolvidas em uma aura de encantamento e charme, e todas as coisas que acontecem parecem sempre acontecer pela primeira vez. O cérebro ainda está crescendo, interpretando os estímulos, depois se acostuma com a vida, e nada será tão excitante quanto antes. Ao refletir sobre isso, alcancei uma espécie de iluminação. Eu ainda me lembro de como me sentia nessa época, porque não faz muito tempo, e confesso que me questionei várias vezes sobre o que era aquilo que estava me deixando progressivamente mais infeliz e menos empolgada com algumas coisas que antes eram experiências de arrebatamento. Não estou infeliz, pensei, de repente. Só estou envelhecendo.
Outra coisa muito importante, no entanto, acontece antes dos 25. Alguns caminhos talhados nessa geleia de memória e tempo são definitivos. Ainda na juventude o pensamento vai encontrando seu jeito de ser, e ali se instala, vestido dos próprios traumas. Como um dente que nasceu torto, ou uma programação que vai se desenvolvendo desde a fábrica, a mente que aprende a se expressar de um jeito não consegue encontrar outro com facilidade, vai por onde conhece. Não sou neurocientista, pelo contrário – sou fascinada por todos os tipos de ciência, mas não sei praticar nenhuma. No meu caso, esse pedaço isolado de informação me fez refletir sobre meu cérebro de artista, o chamado talento e como os diversos tipos de arte são formas particulares de linguagem, não apenas para processar e interagir com o mundo, mas também para falar consigo mesmo. No caso de algumas pessoas, o mecanismo de expressão passa pela música, a dança, o desenho ou a pintura. Para mim, é a escrita.
A minha história com a literatura é como a de milhares de escritores por aí. Escrevo desde menina. Desde antes de saber ler. A lembrança mais forte que minha mãe tem sobre a minha infância, a que ela repete sempre, é que eu era uma criança esquisita calada que gostava de inventar histórias para seus bonecos. Eu não só batizava as criaturinhas de plástico, como criava todo o referencial teórico de suas existências, e essa continua sendo minha brincadeira preferida, só que agora eu fabrico pessoas mais sofisticadas. O meu cérebro, por algum motivo que ainda estou a considerar, foi talhado em ficção. Agora ele não sabe se comunicar por outra forma que não seja criando histórias.
Isso traz algumas consequências negativas. Na terapia, descobri que tenho uma tendência a tentar narrar os acontecimentos da minha vida como se fosse personagem de um livro que alguém está escrevendo, imaginando cenários que quase sempre não são realidade, o que leva à ansiedade e às vezes flerta com a depressão. Meu marido com frequência reclama que eu aumento demais as coisas e que os fatos que eu relato – quando estou em uma roda de amigos, por exemplo – nunca têm grande credibilidade, porque eu sempre vou alterar alguns detalhes para entretenimento da plateia. Como alguém que se especializou sem querer em enxergar a vida pelos espelhos das histórias, estou condenada a relatar o mundo enquanto o vejo. Por muito tempo considerei isso uma maldição. Mas também é um certo tipo de benção.
Porque é lendo e escrevendo que eu fabrico o conforto, é meu jeito de aprofundar o conhecimento nas coisas que acho fascinantes, mas só entendo quando transformo em palavra. Algumas pessoas chamam isso de talento, um conceito que parece muito raso para descrever um processo tão complexo. Não me considero uma pessoa talentosa. Eu só estou há tanto tempo praticando que meu cérebro se acostumou e fez disso sua maneira principal de interpretação. Porque a grande verdade é que escrever me dá um barato enorme. Quando escrevo, sinto meu corpo inteiro dizer: é isso, é isso, é isso.
Nunca foi uma escolha ser escritora. É só algo que eu sou. As minhas narrativas sempre estiveram e sempre estarão aí, enquanto minha passagem pelo planeta continuar. A diferença é que agora tem uma dúzia de gatos pingados que se interessam em ler. E, por ter testemunhas, eu e meu cérebro somos profundamente agradecidos.
A escolha de ser escritora é feita toda vez que vc escreve. :)
lindo demais o texto, Fabiane <3 "O meu cérebro, por algum motivo que ainda estou a considerar, foi talhado em ficção. Agora ele não sabe se comunicar por outra forma que não seja criando histórias" :')) é muito difícil elaborar sobre nossa própria escrita, mas amei o modo como você conseguiu fazer isso trazendo parte do que você leu e de suas experiências ao longo da vida. um beijo!