Como ocorre a muita gente, por muitos anos ser escritora foi minha identidade secreta. Aquela que eu só revelava aos amigos íntimos, nos momentos de fabulação. Com as primeiras publicações – um conto em uma antologia aqui, um prêmio literário ali –, ganhei coragem para sair do armário artístico, passei a me autodeclarar, ainda que na sombra. Hoje, aos trinta e um anos, não me defino de outra forma.
E você vive disso, ou faz mais alguma coisa? A pergunta é natural. Às vezes digo que sou jornalista, embora tenha deixado o jornalismo há tempos. Às vezes faço uma gracinha e digo que sou Uber das letras, o que é verdade. Queria poder responder que essa é sim a única coisa na minha lista de afazeres, mas infelizmente está longe de ser a realidade. A maioria dos escritores brasileiros vende tão pouco que não daria para fazer uma compra do mês com os royalties que chegam. Eu vivo de literatura, isso é verdade. Nada mais me inspira ou me motiva tanto. Para me sustentar, no entanto, tenho outros tantos trabalhos.
Para quem não está familiarizado, aqui vai uma breve explicação sobre quanto dinheiro um escritor ganha, já que essa é uma das perguntas que mais recebo: o padrão é 10% em cima do preço de capa do livro. Aquele romance que custa R$ 50, portanto, vai render R$ 5 ao artista. É claro que essa é a realidade de editoras mais tradicionais, de médio a grande porte, que conseguem arcar com tiragens maiores. Em muitas casas editoriais pequenas, a porcentagem pode não existir, ou ser condicionada à venda de exemplares.
O acerto depende das editoras. Algumas pagam de seis em seis meses, outras a cada trimestre. No caso das grandes casas, como a Companhia das Letras, em geral os autores recebem um adiantamento, que funciona como uma espécie de pagamento antecipado pela aquisição da obra, que depois será descontado do dinheiro da venda.
Ou seja, ganha-se muito pouco vendendo livros, até porque as tiragens para autores nacionais são modestas e levam uma eternidade para esgotar. Existem, porém, os pontos fora da curva, autores que acabam vendendo extraordinariamente bem, e assim conseguem uma boa grana. Artistas independentes também têm a possibilidade de ganhar mais, embora também precisem investir mais. Gente premiada e estabelecida consegue tirar um quinhão razoável, ainda que pouco perto do tempo e esforço envolvidos.
Para nossa alegria, a venda de livros não é a única forma de ganhar dinheiro no ramo. Escritores profissionais também podem levantar alguns cascalhos participando de eventos, bienais e feiras do livro; vendendo os direitos de seus romances para o cinema ou a TV; ganhando prêmios ou comercializando os direitos de tradução para outras línguas. Embora mais difícil, esse é o tipo de coisa que rende um bom dinheiro extra. A outra esperança é ganhar na Mega-Sena.
A verdade é que escritores e escritoras costumam ter várias ocupações para pagar os boletos. Muitos são jornalistas, professores, roteiristas ou tradutores. Há quem ministre oficinas de escrita, cursos e ofereça serviços de mentoria. Outros, como eu, alugam suas palavras para as coisas mais insólitas – um dos meus trabalhos fixos, por exemplo, é como tradutora e redatora de testes de Facebook. Sim, sabe aqueles testes que a sua tia compartilha? Pessoas como eu escrevem os resultados (e acho que é o melhor freela que já tive). Também conheço colegas que já trabalharam escrevendo horóscopos e significados dos sonhos para revistas.
No meu caso, cheguei a circular por um bom tempo no jornalismo. Fui repórter de redação por sete anos, e cobri uma infinidade de assuntos, de esportes a política. Mas era como vestir uma roupa que não me cabia. Ciente de que não duraria muito naquela vida, migrei para o campo da comunicação e os direitos humanos em 2019, quando fui trabalhar em uma agência da ONU aqui em Brasília. Encantada com a possibilidade de servir a uma causa na qual acredito, no primeiro ano cheguei a declarar para minha chefe que queria seguir carreira nas Nações Unidas. A chefe em questão (Rachel Quintiliano, uma das mulheres mais fodas que já conheci) logo disparou: achei que você queria ser escritora.
“Sim, ser escritora é meu sonho, mas é um sonho muito difícil”, lembro de ter respondido algo nessa linha.
“Aqui não é lugar para você. Vai ser escritora”, ela rebateu, mais ou menos assim.
Rachel estava certa, é claro. Dois anos depois, no meio de uma pandemia, deixei a ONU para perseguir o meu lugar. Àquela altura, já havia lançado o Apague a luz se for chorar, que teve uma recepção modesta, porém positiva. É óbvio que muitos acharam que eu estava maluca. Minhas amigas mais conservadoras ficaram com medo de me ver dormindo na sarjeta. Minha mãe, preocupadíssima, não parava de perguntar o que ia fazer. Mas eu tinha um plano. Era o mesmo de sempre.
Olhando em retrospecto, todas as coisas que fiz na minha vida profissional tinham um pezinho na literatura. Na faculdade, lia Gay Talese com esperanças de que ainda fosse possível fazer aquela ficção travestida de jornalismo. Como trabalho final, escrevi um livro reportagem totalmente literário sobre a violência do tráfico no bairro da periferia onde cresci. Fiquei conhecida por todos os meus chefes e editores como a garota boa em escrever histórias humanizadas. No UNFPA, agência da ONU onde trabalhei, uma das minhas missões era contar a vida de pessoas venezuelanas migrantes e refugiadas em Roraima.
Quando decidi largar tudo isso para assumir a pecha de artista e viver de “bicos”, senti aquele conhecido solavanco na barriga, mas tinha uma certeza muito grande de que estava fazendo a coisa certa. Por sorte, nunca faltou trabalho (e espero que não falte, pelo amor de Deus, porque tenho uma filha a caminho). Como CEO de mim mesma, faço de tudo um pouco. Escrevo para empresas, escrevo testes de Facebook, escrevo manuais de comportamento. Nos horários que cabem, escrevo minhas ficções.
O meu sonho de princesa é viver de literatura em tempo integral. Já não acho impossível. Às vezes fico cansada, tenho vontade de desistir, olho para minha carteira de trabalho e choro, com saudades daquela coisa chamada direito trabalhista. Também sou especialista em me cobrar. Fico me perguntando se tem algo que eu poderia fazer de diferente para que meus livros fossem mais lidos. Mas, no fim, a sensação é incrível, porque é mais do que uma questão financeira. É a minha identidade. É libertador preencher um formulário e, no campo profissão, colocar apenas essa palavrinha mágica, por muito tempo duvidosa e carregada de impossibilidades: escritora.
Antes de ir embora...
Na semana passada, o Ministério da Cultura lançou um concurso literário incrível, voltado apenas para autoras com obras inéditas, o Prêmio Carolina Maria de Jesus. Você pode baixar o edital aqui e eu recomendo muito que participem (são R$ 50 mil, uma oportunidade de ouro).
Sou fã declarada do Substack e hoje vou indicar duas newsletters que gosto muito: a da Ana Rusche e da Carol.
O motivo por trás da edição de hoje não foi, é óbvio, passar o chapéu, mas vale mencionar que acabei de abrir um serviço de leitura crítica & consultoria literária para escritores que estão no começo ou meio do caminho. São vagas limitadíssimas porque a capacidade é limitada. Quem tiver interesse, é só me mandar um e-mail pedindo mais informações: fabiane.c.guimaraes@gmail.com. Assinantes das Tristezas da Estimação têm desconto, é só dizer que vieram daqui.
Ah, e comprem meu livro novo, Como se fosse um monstro. Eu juro que vale a pena.
Difícil não se identificar com o texto, quando tanta gente gostaria de viver de escrita e sabe que é praticamente impossível - eu incluso. Mas eu trabalho como designer, o que não “gasta” as minhas palavrinhas (só a minha criatividade, às vezes). Como você faz pra ainda ter palavras pra sua escrita, depois de passar o dia escrevendo para outros?
ansiosa pra ler seu livro novo. vou me programar pra comprá-lo em breve. adorei o texto e me identifico demais com essa dificuldade de me assumir escritora.