Tem uma cena do filme Dias Perfeitos sobre a qual não paro de pensar há quatro meses. Se você não acompanhou o hype, nesta obra-prima delicada do Wim Wenders acompanhamos o cotidiano de Harayama, um faxineiro responsável por limpar os banheiros públicos de Tóquio, que segue todos os dias uma rotina simples e sem grandes acontecimentos. Ou melhor: uma rotina em que aprecia os pequenos grandes acontecimentos que cabem em um dia ordinário. Durante o filme, sabemos muito pouco sobre Harayama, um personagem que quase não fala. Sabemos que ele gosta de ouvir fitas cassete no caminho para o trabalho, que lê antes de dormir, gosta de fotografar o movimento entre as árvores e aprecia as plantas. É um homem simples, vivendo em um lugar simples, parece ter encontrado um lar dentro dessa simplicidade quase onírica.
Na cena sobre a qual não paro de pensar, temos o único vislumbre de sua vida pregressa, da vida que aconteceu antes que ele encontrasse seu lugar no mundo, quando recebe a visita de sua irmã em um carro luxuoso. Harayama cumprimenta a irmã com o mesmo espírito franco e silencioso, e nos pouquíssimos segundos de interação descobrimos que não foi sempre assim (a simplicidade, o ritual de beleza). Entendemos que ele vem de uma família abastada, e escolheu abandonar isso tudo por algum motivo traumático. Nada de mais é revelado ali. Tudo que precisamos saber é revelado ali. É uma aula de narrativa precisamente por isso, por revelar uma história que ampara e justifica esse personagem, mesmo que seja uma história incompleta. Incompleta porque não é entregue com todos os seus detalhes, e deixa ao outro lado a benção da suposição.
Esse é um tipo de sofisticação narrativa que também aparece na boa literatura. Está na emblemática dúvida de Bentinho e nas personagens misteriosas de Lygia Fagundes Telles. Kazuo Ishiguro, um dos meus escritores favoritos, é um mestre nisso de não dar satisfação ao leitor: em um de seus livros, somos jogados em meio a uma realidade de pessoas clonadas com o propósito de doar órgãos. Não há introduções a esse mundo, nem justificativas morais, é um mundo que simplesmente existe, e pegamos a história já no meio do caminho. Em outro livro dele, uma terra medieval é assolada pela névoa do esquecimento, em uma alegoria que jamais é justificada, mas definitivamente sentida.
Também pesco aqui na memória o maravilhoso Galveias, de José Luis Peixoto. No romance do português, um meteoro cai em um pequeno vilarejo, arrastando um cheiro pernicioso de enxofre, mas essa não é a história do meteoro. Apesar de muito impactadas pelo evento, as pessoas não o investigam de frente, é um evento que corre simultâneo às vidas narradas. Amo esse livro. Um dia, uma amiga a quem o dei de presente comentou comigo: “você percebeu que o meteoro é uma metáfora para o regime de Salazar em Portugal?”. Eu não tinha percebido. Me senti muito burra, mas admirei ainda mais o livro.
É lindo quem consegue narrar assim, sustentando mundos inteiros nas entrelinhas, e contando com a inteligência dos leitores para completar o caminho. Nem tudo precisa ser descrito e sinalizado, encaixado nos capítulos com um holofote de intenção. A melhor literatura, na verdade, é feita dessas pálidas insinuações.
No fundo, trata-se de uma extensão daquele conselho de escrita batidíssimo, porém verdadeiro: mostre, não fale. Mas mostre pouco. Uma das questões que mais encontro no trabalho de escritores iniciantes é a urgência por sair revelando tudo que podem de seus personagens, com frequência recorrendo a imagens gastas e arrematando o fim das histórias antes de completar o arco de desenvolvimento. Eu reconheço, porque também já fui assim. Parece que você quer provar a alguém (a quem?) que a sua ficção é verdadeira, que a sua mentirinha é passível de verossimilhança, e o recurso ao qual recorre é quase sempre o caminho da obviedade.
O personagem machista vai aparecer então cuspindo no chão e xingando a mulher; um rapaz no armário vai descobrindo a sexualidade ao observar os amigos jogando futebol ou algo do tipo; a esposa reprimida tem desejos secretos, mas é incapaz da sordidez. Todos esses traços de caráter, definitivos para o caminhar da história, podem aparecer de uma forma muito mais sutil. O machismo de alguém pode não estar escancarado na brutalidade, mas no afeto quase insuportável que um pai sente por suas filhas, ou na vergonha em assumir uma depressão. O rapaz no armário pode se descobrir por meio das aventuras em um darkroom. A esposa se vinga da repressão sumindo com objetos e quinquilharias do marido e deixando-o louco aos pouquinhos. Enfim, são inúmeras as possibilidades, e quanto mais surpreendentes e sutis, melhor.
O leitor não é burro. O leitor também pode ser induzido, ou convidado a participar da história. Para onde levá-los é uma escolha, e essa escolha começa pelas palavras utilizadas. Se você recorre a lugares-comuns para começar qualquer coisa (“era uma linda manhã de sol”, “a luz da lua iluminava a noite”), é bastante provável que o cérebro do leitor tome por certo o que vai encontrar e perca o interesse de cara. A sensação é que ele já leu aquilo, o que dificulta o trabalho de fisgá-lo. Da mesma maneira, revelar tudo sobre um personagem já nas primeiras linhas – porque fulano é assim e assado – é tirar a glória do mistério. E nós queremos mistério.
Uma das coisas que mais me incomodam na literatura contemporânea brasileira é a pressão que sofremos, às vezes, por entregar tudo mastigadinho. Já escrevi sobre isso aqui antes, alguns leitores já abrem nossos livros buscando uma lição de moral, uma mensagem edificante, personagens de caráter íntegro e jamais duvidoso. Tenho preguiça. Não acho que devemos conduzir a escrita por essa necessidade de agradar. Não é para isso que estamos aqui.
Como fugir disso? Elaborei um pequeno roteiro:
1. Como contar uma história de um jeito único?
2. Como demonstrar um comportamento por meio de algo simbólico?
3. Qual é a verdade sobre meus personagens que o leitor ainda não conhece?
4. Qual o espaço da dúvida nas minhas histórias?
É isso.
Nos vemos na semana que vem.
Pausa para passar o chapéu
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Amo esse filme, um dos favoritos da vida, repleto de sutilezas que podem significar tanto. Clarice já dizia sobre a escrita em Água Viva: "Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem as entrelinhas."
"O leitor também pode ser induzido, ou convidado a participar da história. " Caraca, eu achei isso lindo! Como leitor, eu amo me perceber sendo fisgado pela história. No meu caso, o processo de perceber que já estou imerso naquela história passa por realizar que quando eu penso que vou molhar só a canela, na verdade, já estou na área mais fundo da piscina.