Ontem eu estava tranquila, cuidando da minha vida, quando tive mais uma ideia para um romance. Fiquei estressada. Como vocês sabem, estou terminando o livro atual, tenho um de ficção científica na fila, sou mãe de uma mini pessoa autoritária, tenho um trabalho fixo e dezenas de outros picados, não tenho tempo nem saúde para ideias novas. Mas, lá estava, uma ideia fresquinha, linda de morrer, com um enorme potencial. No cerne dessa ideia nova, que obviamente não vou falar qual é, está o desejo de fazer uma literatura que vá na contramão do panfletário e higienizado mundo dos romances que parecem escritos para ganhar prêmios ou coletar resenhas positivas, um romance que fale sobre personagens humanas, e não apenas teses sociológicas. Aqui, peço perdão às pessoas que eventualmente posso ofender, mas precisamos falar sobre isso.
Em primeiro lugar, gostaria de dizer que não sou do time das pessoas que critica a representatividade ou o discurso identitário. Pelo contrário. Sou tão defensora desse mundo plural que estranho um livro nos quais essa pluralidade não está incluída. Acredito que essa representatividade tem que vir do mercado, sobretudo, por meio da seleção e incentivos de vozes que tragam outros olhares. Mas isso não significa que precisamos de livros planos, sem criatividade, que tentem enfiar moldes de representatividade goela abaixo, apenas porque é isso “que está vendendo”. Eu odeio livro que tenta me dar lição de moral. Odeio de morte.
O que está acontecendo, do meu humilde ponto de vista, é que a corrida pela diversidade do mercado editorial tem feito muitos escritores e escritoras caírem na armadilha do desejo de agradar. Com a urgência de abordar questões sociais que precisam mesmo ser abordadas – como o racismo, a pauta ambiental e a violência contra as mulheres – a galera está perdendo a mão e reproduzindo estereótipos, caindo no mais do mesmo, em vez de aprofundar a discussão. Para atingir esse público leitor que adora uma literatura limpinha, evita a polêmica. Para agradar aos que estão buscando heróis inquestionáveis, criam personagens planos, que fazem apenas o que é esperado deles. Todo mundo quer fazer um livro importante. Quase ninguém quer escrever um livro perturbador.
Esse não é um fenômeno exclusivo do Brasil, inclusive. O mercado internacional vive a mesma situação, o que inclusive foi abordado pelo ótimo filme Ficção americana.
Eu gosto de gente corajosa, que escreve sobre o mundo como ele é, sem perder de vista que o primeiro trabalho de um ficcionista é escrever ficção. Outro dia estava pensando na Hanya Yanagihara, que é uma puta de uma das autoras mais corajosas que eu já li na minha vida. A Hanya, para quem não sabe, é autora daquela imensidão de livro chamado Uma vida pequena, um livro feito para desgraçar a nossa cabeça e desidratar a pessoa de tanto chorar. Se formos olhar pela ótica de mercado, a Hanya preenche vários “checklists de diversidade”, já que seus livros são protagonizados por pessoas LGBTI de várias raças. Suas histórias, no entanto, não são pautadas por discursos panfletários. Pelo contrário. São histórias profundamente humanas, por acaso protagonizadas por “pessoas diversas” (ênfase nas aspas irônicas).
Mesmo com o sucesso massivo de Uma vida pequena, Hanya não se impressionou a ponto de segurar a mão no próximo livro. Ela não caiu na falácia de tentar reproduzir a fórmula, em vez disso foi fazer o que ela queria. O resultado é um livro complexo: Ao paraíso, um romance composto por três histórias diferentes separadas no tempo e no espaço, que está muito longe de alcançar o sucesso do irmão mais novo. Choveu críticas em cima do livro, inclusive. Metade da crítica odiou. Conheço gente que é fã da Hanya, mas odiou. Eu, por outro lado, amei. Fiquei envolvida com as três histórias, por mais longas e maçantes que elas possam parecer em certos momentos. Achei que poderia ter umas duzentas páginas a menos? Achei. Mas a Hanya, cara, que mulher corajosa. Ela fez o que queria fazer, e esse é o verdadeiro trabalho de um artista. A leitura que fazem depois é problema dos leitores.
A primeira história de Ao paraíso é um exemplo perfeito de uma história fresca, vibrante, que aborda questões sociais, mas provocando questionamentos. A trama se passa em uma versão alternativa dos Estados Unidos, em 1893, em um mundo paralelo onde questões de sexualidade e raça não são um tabu, e é permitido a qualquer um namorar e casar com quem quiser, do gênero e raça que preferir. O protagonista é um jovem homossexual muito rico que, em vez de casar com o pretendente rico que seu avô escolheu, se apaixona por um cara pobre. Não vou dar spoiler, mas a conclusão do capítulo vai completamente na contramão do que se esperaria, porque a verdade é que essa não é uma história bonitinha sobre amor negro LGBTI. Essa é uma história sobre capitalismo, classe e como o dinheiro fala mais alto, mesmo em um mundo ideal.
Amo livros que me lembrem do prazer de ler. Eu não quero ler histórias palatáveis que reproduzem sempre estereótipos. Quero me entreter, quero histórias malucas de viagem no tempo, doces reflexões sobre a vida adulta, histórias de amor e misticismo. Acima de tudo, quero narrativas humanas, com personagens inesperados. Quero gente preta mal caráter, mulher filha da puta, gay trambiqueiro, não quero que todos homens brancos sejam sempre os vilões.
Isso vale para a literatura feita por mulheres, viu? Não é porque fomos chutadas e invisibilizadas por anos no mercado editorial, de certa forma continuamos sendo, que temos que seguir escrevendo livro de mulher sofredora que apanha do marido e é estuprada. Desse jeito, estamos dando munição para os fascistinhas de merda e machistas de plantão que adoram usar a crítica ao discurso identitário para disfarçar sua misoginia. A coisa mais preciosa que uma mulher tem ao escrever é seu olhar sensível e aberto para as brechas do mundo. Se temos mais liberdade para criar, então vamos criar o que a gente quer.
Incluir diversidade em uma narrativa vai além de cumprir tabela ou preencher uma lista de requisitos. É um processo que tem que acontecer de dentro para fora. Primeiro, a história como ela é. A discussão sobre os temas importantes abordados ali é trabalho da crítica e tem que vir depois. Não é papel de escritor tentar forçar essa discussão, criando narrativas artificiais, que não enganam ninguém.
Meu segundo livro, Como se fosse um monstro, ganhou mais projeção do que eu esperava por tratar de questões polêmicas como aborto, direito de escolha e questionar a maternidade compulsória. Mas até me ofende se alguém achar que eu escrevi para me dar bem nessas discussões, porque é absolutamente o oposto. Antes de escrever o livro, eu não pensei: “nossa vou falar disso aqui, esse tema vai bombar”. Eu tive a ideia mais ou menos assim: “caraca quero escrever um livro sobre uma barriga de aluguel”. Ponto. Quem leu o livro sabe que a Damiana, apesar de ser preta e pobre, está longe de ser uma heroína que todos esperam. Ela é humana. É a melhor personagem que eu já criei porque é cheia de contradições.
Para você que está aí, em dúvida se o seu livro vai ser notado, se ele é “importante” o suficiente: não caia nessa tentação. Foque na história, tente fazer o que é verdadeiro, e o resto vem depois. Estou aqui esperando que tudo isso seja uma onda. Que a diversidade de vozes permaneça, mas os livros ruins de engolir fiquem para trás. Oremos.
voto com a relatora: queremos bons livros que podem abarcar a diversidade, e não livros feitos para atender às expectativas do mercado por diversidade.
Eu ainda vou terminar de ler seu texto, mas antes que me esqueça: quer ler um livro de gay trambiqueira? Gay de Família do Felipe Fagundes. Depois me agradeça rs