Sempre tive o hábito de fazer listas de objetivos para o próximo ano, escrevendo metas ambiciosas e sérias, que me esforçava de verdade para cumprir. Aos vinte anos encarava a vida com uma mentalidade meio rolo compressor, do vou fazer vou criar vou atingir, o que muitas vezes prejudicou minha saúde mental, embora tenha sido positivo para me colocar em um lugar mais confortável agora. Consegui realizar a maior parte daqueles sonhos rascunhados – não em um ano, como pretendia, mas em uma década. Não faz mal, pelo menos o tempo fica menor e consideravelmente mais suave depois que passa.
Para o ano que vem, não farei listas. Sim, há coisas que gostaria que acontecessem, talvez me esforce para buscá-las. Mas a verdade mesmo é que não tenho mais o que pedir. Depois que me tornei mãe, sinto que o futuro perdeu um pouco a relevância. Não há nada que eu queira mais do que permanecer aqui, nesse presente que reconheço ser o tempo mais feliz da minha vida até agora. Tento aproveitar ao máximo, por mais que seja difícil afastar o cansaço. Acho que se pudesse escrever uma carta para quem eu era, diria apenas continue. Mas, agora, digo: contemple.
Há uma ótima palavra em inglês para esse sentimento e lamentavelmente não consigo encontrar uma correspondência em português – fulfillment. É mais do que realizada, eu me sinto preenchida. Acho muito engraçado que eu tenha lançado um livro em que as protagonistas não querem e não atendem à exigência social de ser mãe no mesmo ano em que ser mãe concretou vários buraquinhos da minha alma. É curioso, mas reforça minha crença, agora ainda maior, de que as mulheres devem ter o direito à escolha. Por toda a vida achei que escrever, ser uma escritora publicada, fosse me trazer esse tipo de felicidade agressiva que ando sentindo, mas a verdade é que quem atingiu o feito não foi um livro, e sim uma menina. Batizada em homenagem a uma grande escritora, sim, mas acima de tudo uma pessoa. Alguém que esculpi no meu corpo. Isso não é incrível?
Estou escrevendo. Mais do que nunca, na verdade. Em 2023 aconteceu uma outra coisa muito legal: passei a ter mais confiança. Na casa onde cresci, confiança sempre foi muito confundida com arrogância. Meus pais me ensinaram o dom da humildade, pelo qual sou muito grata, mas em contrapartida aprendi a desconfiar de toda e qualquer voz que me dissesse que sou boa. Nunca tive autorização para me bancar em voz alta, porque enaltecer a si mesmo sempre foi visto como uma coisa meio vexatória, e a vida inteira entreguei às outras pessoas o poder do reconhecimento. Nesse ano, não. Talvez por me tornar mãe – e, portanto, me sentir forte para caralho – eu mandei aos quintos dos infernos a dúvida. Sou uma ótima escritora. Ninguém vai me dizer o contrário. Não depois que fabriquei um outro tipo de universo.
O sucesso (para os meus parâmetros) do meu segundo livro não tem nada a ver com isso. Agora que pela primeira vez tiro esse sentimento para dançar, percebo como ele é uma espécie de miragem. Confiança é muito mais uma atitude, uma aposta, do que propriamente uma certeza. Deve ser por isso que os homens brancos sempre se sentiram assim. Deve ser ótimo acreditar desde cedo na própria capacidade. Eu levei trinta e dois anos. Mas, pelo menos, consegui autorizar a carta de crédito em mim mesma.
Nesse ano, portanto, lancei esse romance sobre uma barriga de aluguel, que é envolvente, dramático na medida, e que tem muito de quem eu era. Um livro que vai morar em mim por muito tempo, porque uma coisa que os escritores não falam muito a respeito é de como, depois de escritas, as histórias viram uma outra parte da nossa memória. Vez em ou outra eu penso nelas, penso nas frases que alguns personagens disseram, e é como se estivesse lembrando de pessoas reais, gente que esteve na minha vida, e que permanece, mesmo que não mais esteja.
Recebi pelo Monstro uns louros em repercussão que não imaginei colher, e que foram excelentes, não espero muito mais do que isso. Também recebi dois convites muito legais para projetos que deverão ser tocados nos próximos anos. Um deles, uma antologia em particular, me deixou com as pernas bambas e um pouquinho de medo de aceitar. Mas a recém-chegada confiança não me deixou titubear. Aceitei. Escreverei. Eu sei escrever porque sempre fiz isso. A diferença é que agora tem mais do que cinco pessoas lendo, o que talvez aumente a responsabilidade. Sinto que sou uma ginasta subindo o sarrafo. Estou passando pó nas mãos e gritando que consigo. Pode subir, pode subir. Mesmo que eu derrube tudo e caia, estou feliz em estar aqui tentando.
Esta newsletter também foi muito importante para isso. Inaugurei As Tristezas de estimação no ano passado, por influência da minha amiga Mariana Lopes Vieira, CEO e cozinheira imaginária do Conchas, o melhor restaurante literário do Substáquio. Agora tenho muito mais assinantes do que esperava – e olha que nem sei o que esperava. É ótimo praticar a escrita nesse caráter um pouco mais pessoal, e também falar da arte pela qual sou obcecada de um jeito que as pessoas reconhecem, mesmo as que não escrevem. Tenho até apoiadores, olha só. Isso me ajudou a moldar aquela confiança.
(tá aí, se tem uma meta para 2024, talvez seja essa: me dedicar ainda mais às tristezas, em especial ao conteúdo premium. Quero muito propor minha primeira oficina de escrita com os assinantes pagos em breve, e você pode se inscrever desde já aqui).
Em 2023, também comecei a escrever dois livros novos. Um deles ainda é uma incógnita, e para o outro recebi uma proposta muito afetuosa que fez meu coração disparar. O primeiro romance do qual estou falando, que está nomeado nos meus arquivos apenas como KRAKATOA, é uma ficção sobre apocalipse climático, mas também sobre apocalipses pessoais, ou talvez seja sobretudo sobre o tempo. Ainda não sei. O bonito de escrever é descobrir. E eu já descobri muita coisa – como, por exemplo, o fato de que não gosto mais de escrever em primeira pessoa, não sem um motivo para isso.
A voz narrativa
Sempre gostei das duas vozes narrativas. Quem leu meu primeiro livro, Apague a luz se for chorar, sabe que as duas histórias que correm em paralelo são narradas em primeira e terceira pessoa. No Como se fosse um monstro eu tinha feito a mesma coisa (as partes narradas pela Gabriela eram em primeira pessoa, as da Damiana eram em terceira). Até que percebi que não era aquele o caminho. Eu não queria mais escrever em primeira pessoa. Eu deslizava melhor pela terceira, uma terceira de caráter meio híbrido, mas ainda assim distante. Muita gente diz que escrever em primeira pessoa é mais fácil, e hoje eu não poderia discordar mais. É muito difícil assumir a voz de um personagem sem cair na tentação de ecoar a sua. Quando vejo que estou me aproximando muito de mim, pelo menos na ficção, eu fujo.
Agora isso está ainda mais explicado. Sou outra mulher e, portanto, virei outra escritora. Quando fui passagem para a Isabel acessei uma nova concepção de sentimentos que me fizeram um ser humano muito mais empático. Estou acessando minha imaginação para falar do que sinto, mas não vivencio. Minha vivência tem sido plena, cansativa, incerta, deliciosa. Meus livros, por outro lado, continuarão um pouquinho mais sombrios, pois sei que essa bolha dourada onde me meti é um combo de hormônios temperado com um amor delicado e quase espiritual. Ainda me interesso mais pelas tristezas de estimação, essas que a gente carrega mesmo quando está feliz. E me interesso ainda mais agora pelo existencialismo, pelas origens da consciência, pelo motivo de estar aqui, pelo fato de estarmos a um passo de destruir a nossa própria espécie, e mesmo assim tem uma gente como eu que continua amando se perpetuar. São essas coisas que vão guiar minha ficção a partir de agora. São coisas imensas, e por isso me sinto mais confortável escrevendo na terceira pele.
Para a primeira pessoa, reservo esta newsletter. Reservo um projeto de ficção científica muito legal, sobre o qual falarei mais a respeito depois. E reservo o agradecimento a todo mundo que me lê por aqui e nos meus livros, e que também escreve (em público ou em segredo). Estamos mais juntos que nunca, não é?
Feliz vida!
"Confiança é muito mais uma atitude, uma aposta, do que uma certeza". Adorei. Feliz ano novo!
que alegria chegar no substack e encontrar você por aqui! bom poder acompanhar e ter novidades sobre o que você anda escrevendo. que 2024 seja incrível! 😊