
Desde criança sonho com pianos. Em 2013, no entanto, isso começou a acontecer com mais frequência. Era sempre o mesmo sonho. Eu entrava em uma casa abandonada, encontrava um piano e tocava de um jeito lindo. Nunca fui uma pessoa com grandes aptidões musicais, meu ouvido é oco, mas isso não me impediu de aprender a tocar violão e outros instrumentos de corda, ainda que porcamente. Já o piano pertencia a uma outra classe, uma mais sofisticada. Era caro demais para manchar de tentativas. Ficaria por isso mesmo, se eu não tivesse sido interpelada por uma senhora médium, com quem me consultei durante uma sessão de atendimento promovida casualmente na casa de uma amiga. Eu nem sabia direito o alcance da minha fé, não sei até hoje, mas essa senhora, enquanto habitada por uma entidade antiga, me assustou ao dizer: você foi uma grande pianista em outra vida. Seus dedos dançavam sobre as teclas. Fiquei surpresa. Pensei nas minhas visitas noturnas e de como eu não tinha contado aquilo para ninguém. Disse à entidade eu sonho com pianos. Ela riu. Claro que sonha. Você ainda se lembra.
Adoro contar essa história porque ela é romântica e inusitada. Depois desse episódio, é claro que comprei um piano elétrico e me matriculei na aula. Quem não faria isso, no meu lugar? Do ateu ao crente, curiosos precisam tirar a prova. Já adianto que, para tristeza do narrador, não me aconteceu nenhum resgate de virtuosismo passado, nem mesmo uma singela inclinação para o instrumento. As aulas introdutórias foram um desastre. Meus dedos ossudos pareciam garras, não deslizavam com facilidade pelos exercícios, e ao tentar ler os rastros de formiga nas partituras eu cheguei à conclusão que essa é uma forma de leitura que nunca vai me pertencer. Se fui pianista, isso de fato ficou em outra vida. Nesta aqui sou só escritora.
É óbvio que aprendi algumas coisas, a maioria decorada. Músicas que sei tocar até hoje, mesmo largando as aulas uns seis meses depois. Aprendi também a linguagem básica dos acordes e às vezes ainda toco uma coisinha ou outra, sempre com auxílio da cifra. Não é meu maior talento, mas tudo bem. É um ótimo passatempo e adoro compartilhar isso com minhas filhas (vai que elas se interessam em seguir minha carreira musical?). Ando pensando muito nessa história, no entanto, porque volta e meia me pergunto como estaria tocando se não tivesse abandonado as aulas. Porque essa é a verdade inegável: eu abandonei. Abandonar é uma ocorrência ingrata que sempre gera uns bolsões de ar no futuro. A marca daquilo que é deixado fica ali, ocupada de seu próprio vazio, da possibilidade extinta antes de acontecer.
Talvez o piano me acontecesse. Se eu insistisse, como a Zelda Fitzgerald insistiu com sua escrita e seu balé torturante na terceira idade das pernas. Não me ressinto especialmente por isso, há muitas outras coisas que abandonei, como a pós-graduação em marketing digital, a terapia e o curso de francês. Todo mundo tem na vida uma pilha mais ou menos grande de cacarecos deixados para trás, que pode incluir conhecimentos, profissões e pessoas. Você experimenta, vê que não cabe e segue em frente. Desistir é natural. Mas o grande segredo da satisfação, imagino, está naquilo que a gente não desiste.
O problema é que esta é a era dos resultados rápidos. As pessoas querem o produto da dedicação sem medir o tempo do esforço. Há uma vitrine de fenômenos raros, uns cometas produzidos artificialmente pela internet, e os ingênuos se convencem de que é possível que aconteça com eles também. Essa imagem alegórica do sucesso potencializada pelas redes é uma miragem das mais perversas. Não dá para esperar que as coisas caiam do céu sem um mínimo de dedicação, sem primeiro plantar uma escada para as nuvens. Se você se enche desse tipo de convicção é capaz de cair várias vezes no colo macio do abandono, acabando com um desfile de vidas passadas e absolutamente nenhuma vida presente.
Vejo isso acontecendo bastante com a escrita literária, uma chaga da qual as pessoas costumam ter muita vergonha e um dos maiores alvos de desistência. Fico feliz quando alguém me diz que voltou a escrever depois de anos ou que reencontrou esse sonho ainda fresco. É um resgate importante. Mas não dá para ignorar que a escrita também envolve a prática. É importante não se desesperar com as dificuldades, nem cair na tentação de se comparar com quem já está na estrada há algum tempo. Estou falando de habilidade, domínio da técnica, e também da profissionalização. Ninguém começa a aula de piano hoje e já quer tocar em um recital. Por que as pessoas querem sair publicando a primeiríssima coisa que escreveram na vida?
Eu amo aquela frase do James Baldwin em que ele diz que o talento não importa, porque existem “muitas ruínas talentosas”. Com a dedicação adequada — em termos de tempo, de aprendizado, de esforço — qualquer pessoa que se preste a escrever vai colher alguma coisa, nem que seja uma profunda iluminação interior. Mas escrever é um ativo em desvalorização, como os modelos de linguagem agora provam: todo mundo acha que é fácil, que não exige uma determinada malemolência que só surge depois de muito exercício, acham que eu estou sentada aqui construindo esse texto utilizando apenas minhas habilidades mais básicas. Posso até escrever de uma maneira que seja fácil para você, leitor, entender. Mas levei anos para desenvolver a qualidade de te trazer até aqui, até essa linha, sem que você tenha se aborrecido e interrompido a leitura no meio do caminho. Isso aconteceu porque, ao contrário do piano, da escrita eu não desisti. É por isso que sou escritora e não pianista.
É óbvio que isso chega mais fácil para uns do que para outros. Existe a coisa da aptidão, que é uma mistura de sensibilidade e repertório de leitura. Quem lê muito e desde cedo costuma escrever melhor, pelo menos do ponto de vista técnico. Mas esse papo do que é bom ou ruim eu deixo para outra edição. Nessa aqui eu só queria mesmo falar sobre o sagrado ofício de se dedicar.
Nunca entrou na minha cabeça o papo de ser escritor e achar que escrever é uma tortura. É um paradoxo. Se isso não é bom, por que fazer? Ou, ao contrário: se te faz tão bem, por que não fazer? Acho que o que ajuda é entender que essa é uma vida de devoção. Tem que querer. Querer muito. Querer o suficiente para desistir de desistir, e também para não deixar que a sua competência atrofie. Porque tem essa, a gente também pode desaprender a escrever, se deixa isso de lado por tempo suficiente. Cria teia de aranha, o músculo de puxar o parágrafo enrijece, dá trabalho para recomeçar.
Engraçado que, depois da maternidade, a minha reverência à escrita aumentou. Não tenho tanto tempo, não mais, mas ao ganhar as meninas parece que desbloqueei um monte de percepções úmidas e cheias de matéria viva. Os paralelos entre a fertilidade física e mental são óbvios demais, constrangedores até, mas estou de fato mais criativa. Comecei a escrever uma história nova e as palavras andam saindo de um jeito totalmente azeitado, quase cremoso. O negócio é que estou exausta. Não consigo engatar mais do que três horas consecutivas de sono por noite, quem já viveu sabe o quanto isso é difícil. Como a minha mente tem encontrado energia, eu me pergunto. Será que na falta de sonhos começou a produzir histórias na clareza da consciência, feito um teatro para distrair o corpo? Não sei. Não sei justificar a urgência em escrever de madrugada no bloco de notas, com a bebê agarrada ao peito, digitando apressada como se estivesse recebendo uma mensagem psicografada pelo meu próprio espírito. Lembro que o meu próximo romance, o que sairá em breve, surgiu durante os primeiros sete meses da Isabel. Um livro feito no puerpério. Nesse princípio da Cora estou querendo aprontar outro. Só consigo pensar no que sobrará ao fim dessa evolução. As coisas que serei capaz de fazer quando não estiver tão cansada.
É muita dedicação, sim.
De vez em quando ainda sonho com o piano. Talvez na vida seguinte eu sonharei com esta aqui.
Engraçado que vc nessa vida dança com as teclas de outro jeito!
você precisou tocar piano em uma vida passada para que nessa você ousasse com as suas mãos de outra forma, porém bela do mesmo jeito!