Há um ano e setenta e três dias saiu de mim uma menina com olhos de amêndoas e, desde então, eu nunca mais tinha conseguido ficar sozinha. Todas as minhas noites se adequaram ao ritmo das noites dela, o meu tempo passou a ser repartido entre suas necessidades, e eu descobri um amor animalesco porque, como as cadelas e as onças que lambem suas crias, nunca deixei que o espaço entre nós se abrisse muito. Na semana passada, no entanto, fiz minha primeira viagem a trabalho. Foi também a primeira noite em que dormi longe dela. Já no aeroporto, enquanto pedia um cappuccino adocicado daquela franquia americana que ainda frequento por um hábito incongruente, comecei a sentir o frenesi de uma liberdade estranha. Digo estranha porque ficar sozinha, agora, desafia as leis da física. Como é possível estar inteira, eu me pergunto, se deixei um pedaço de mim para trás?
Tenho uma grande implicância com a cidade de São Paulo. É uma cidade que me incomoda porque ocupa muito espaço, porque tem muita gente o tempo todo, porque é uma cidade arrogante, que não liga para a sua alma. Costumo dizer que não gosto de São Paulo porque, todas as vezes em que vou para lá, sofro algum aborrecimento. Passo frio, passo raiva, fico presa por horas no trânsito, tenho vontade de voltar correndo para casa, nunca fico mais de dois dias porque sinto que começo a murchar. Mas a verdade é que não conheço São Paulo, ela também não me conhece, e nesse desprazer mútuo ninguém faz questão de melhorar a relação. Existem coisas boas, como em todos os lugares existe. São Paulo é o centro das possibilidades, e eu entendo como isso pode ser libertador, a ideia de que você pode ser qualquer coisa, viver qualquer vida, estar no umbigo do país, o lugar onde todo mundo concentra suas forças, e o dinheiro e a vida ganham uma perspectiva nova. Dessa vez, na minha liberdade condicional de mãe, entendi um pouco melhor.
Com poucas horas para gastar na cidade antes de me embrenhar no hotel e aproveitar o descanso remunerado, enfrentei quarenta minutos de trânsito, debaixo de uma chuvinha chata, para conhecer uma livraria de rua. A escolhida foi a Livraria da Tarde, um cantinho charmoso liderado pela querida Mônica. Quando lancei meu primeiro livro, Apague a luz se for chorar, a Livraria da Tarde foi a primeira a se entusiasmar e apoiar o lançamento, mesmo que eu fosse uma semidesconhecida de uma terra distante, e assim foi com meu segundo livro. Nas redes sociais, eu me admirava com as imagens dessa loja colorida, que tinha o diferencial de ser habitada por Lennon, o cão livreiro mais elegante do mundo. Falei a mim mesma que, na primeira oportunidade que tivesse, visitaria a loja, faria um carinho no Lennon e agradeceria Mônica e sua equipe pelo carinho com meus livros. Estava ansiosa, sobretudo, para conhecer o cachorro. Acontece comigo. Às vezes os bichos me trazem mais felicidade do que as pessoas.
Há um punhado de dias, no entanto, Lennon se foi. Perdi a oportunidade de conhecer o cão livreiro. Mas ainda dava tempo de conhecer seu pequeno palácio de livros.
Ultimamente não ando muito bem da cabeça. Desde que descobri que estou grávida de outra menina (que provavelmente também virá com esses olhos de amêndoa), minhas ansiedades começaram a galopar suas urgências fantasmas, fico muitas vezes desesperada com essa quantidade de futuro que me caiu nas mãos. Já estou em tratamento psicológico, mas estava me faltando o tratamento literário. Tenho perdido o encantamento com as leituras. Nesse ano, li poucas coisas que me fizeram esquecer da vida. Entrei em ressaca literária, das bravas. E eu sou aquele tipo de pessoa que precisa ler alguma coisa para permanecer um ser humano funcional. Ainda mais se não estiver escrevendo. Depois da visita à livraria, percebi o que me faltava: ouvir os outros, entender o que alimenta o espírito alheio, e receber o carinho e o conforto de uma livreira.
Posso te indicar um livro? Zil perguntou, antes de me indicar um caminhão de livros. Zil é uma revolução, uma daquelas mulheres que se alimentam de ideias, e seu entusiasmo por aquilo que faz – aquilo que é – devolveu minha esperança. Entre as dezenas de sugestões que foram se empilhando nos meus braços (não precisa comprar tudo, é só para ir conhecendo, ela garantiu), um romance em especial saltou aos meus olhos. Só de ler o título, soube que era para mim. O livro era Canto eu e a montanha dança, da catalã Irene Solà. Estou a apenas algumas páginas de terminá-lo, indo devagar, segurando as palavras entre os dedos para ver se aprender melhor como se faz. Canto eu e a montanha dança conta a história de uma família na região montanhosa da Catalunha, e é narrado sob uma multiplicidade enorme de vozes – o que inclui a chuva, o fantasma de quatro “bruxas” que morreram queimadas e uma montanha. É lindo, tem a delicadeza de uma joia, e sinto raiva por não ter localizado esse brilho antes.
Tenho muita vergonha em admitir que compro a maior parte dos meus livros na Amazon. É prático, rápido, e além do mais leio muito pelo Kindle. Parte da minha estafa literária, vim a perceber, era o fato de que eu não encontrava saída no enorme labirinto do mais do mesmo, e visitar a Amazon às vezes é como visitar uma geladeira cheia de estrelas. Parece que as pessoas estão sempre lendo e indicando os mesmos livros, pautadas quem sabe por uma mídia que só repassa indicações por conveniência. Não tenho nada contra o Édouard Louis, por exemplo, mas não aguento mais ser bombardeada com anúncios sobre seus romances. Eu vinha sentindo falta de receber uma dica que não estivesse contida em milhares de outras dicas. Ao me trazer o olhar de quem lê de verdade, lê para além da novidade, a Zil resgatou meu encanto. Cheguei a comentar com ela, inclusive, o meu espanto por ouvir falar de tanta coisa que eu desconhecia, por encontrar em uma tarde um combo de obras e linguagens que o meu coração precisava para se acalmar. Eu, que julgo saber tanto de livros. É que algoritmo não é gente, ela resmungou. Há coisas que só os livreiros podem fazer.
Mais tarde, na cama confortável do quarto de hotel, não consegui dormir. Não foi exatamente uma surpresa. Acordei nos dois horários da madrugada em que Isabel está habituada a acordar, com os olhos perdidos no escuro de um quarto sem luzinhas de unicórnio. Lá longe, ela chorava no colo do pai. Fiquei assustada com a força desse instinto que reconfigurou a fiação do meu cérebro, me senti terrivelmente sozinha: eu não quero mais ficar sozinha. Enquanto bebia um gole de água, no entanto, senti a minha outra menina se contorcendo, apalpando suas paredes de carne, era o meu pequeno peixinho nadando. É uma coisa de outro mundo, essa sensação de um bebê cavando areias movediças dentro de você, e a Cora se mexe muito, se mexe desde cedo. Naquela madrugada, suas ondinhas pareciam dizer: estou aqui, mamãe. Também estou aqui. Por que é que você achou que estava sozinha?
O algoritmo não é gente porque não entende a grandeza do amor.
A Zil é fantástica, sou vizinha da Livraria da Tarde. Um grande privilégio para uma leitora faminta.
Obrigada por essa partilha, Fabi. Morando fora, sinto falta mesmo de uma curadoria real dos livros. Deve ser por isso que nos últimos treze anos vivendo aqui, acabei lendo mais livros em alemão do que em português. Ia sempre na livraria do bairro e a livreira era um doce de pessoa que lia tanta coisa diferente, da qual nunca tinha ouvido falar e que, no final, eu amava. Viva os livreiros!
E ah, meus dois filhos sempre se mexeram muito na barriga…vou te dizer que, no meu caso, essa personalidade permaneceu do lado de fora da barriga 🙈😅 que venha Cora, cheia de vida e movimento!