Estou tentando escrever um livro novo. Dois, na verdade. Um deles é um projeto ambicioso de ficção científica que finalmente resolvi começar, depois de ser atormentada por meses com essa vontade. O outro é um drama realista, em teoria mais fácil, no qual estou trabalhando há 12 anos – já descartei inúmeros capítulos, mudei a ideia inteira, mas fiquei com a personagem principal e seu nome de batismo, porque a alcunha de alguns personagens, como se sabe, é sagrada. A vida toda estive escrevendo livros. Alguns deles nunca terminei, talvez nunca termine. Quanto aos outros, quem sabe? Não custa nada começar.
Acho engraçado quando vejo cursos que vendem fórmulas prontas para escrever livros, porque esse é um processo tão íntimo que parece improvável de ensinar. Qualquer processo de criação tem essa particularidade. Você pode e deve ter referências, estudar coisas como estruturas e construção de personagens, mas criar alguma coisa do zero implica em fabricar uma nova curva no tecido do universo. É como se apropriar de todos os elementos conhecidos, as moléculas orgânicas e os demais ingredientes da vida, e então manifestar um novo animal – semelhante a todo o resto que existe, mas único em sua expressão. As possibilidades são infinitas e o resultado tem muito mais chances de ser bom quando é produto da singularidade.
As pessoas às vezes me perguntam como faço, por onde começo, e confesso que demorei muito tempo para refletir sobre meu processo, até porque ele mudou. Para quem não sabe, comecei escrevendo histórias policiais e de suspense, que por muito tempo foi meu gênero favorito de leitura. Quem já leu meus livros percebe que carrego fortes influências dali. Com o policial, aprendi técnicas de envolvimento do leitor, de como fisgar a atenção e esconder surpresas no enredo. No meu debutar, esquematizava todas as minhas tramas por essa lógica, um esqueleto em que sempre havia um problema e uma resolução. Escrevi muitas histórias (ruins) de crimes. Depois, percebi que não era exatamente isso que queria fazer. Então, meu processo mudou para algo um pouco mais indefinido, o que às vezes é um problema. Às vezes tenho ideias que não são ideias, e sim sentimentos. Sinto vontade de escrever sobre impressões, sensações específicas ou paisagens que enxergo, e sinto que tenho me tornado uma escritora melhor nessa sinestesia criativa.
Se você perguntar a cada escritor como ele ou ela trabalha, vai receber respostas muito diferentes. Conheço pessoas que escrevem longos estudos de personagem antes de partir para o livro de fato. Os mais organizados fazem escaletas, planejam seus capítulos minuciosamente, distribuem post-its para lembrar de quem estão criando. Há também quem goste de escrever dezenas de páginas de ambientação e construção de mundo, que no fim não serão usadas. No meu caso, sempre achei que fazer qualquer tipo de esquema tiraria a graça do negócio. Porque o barato, ao meu ver, é justamente descobrir a ideia enquanto escrevo.
Tenho algumas regras, é claro. Nunca começo nada, nem mesmo um conto, sem saber: 1) quem é a pessoa central da história, o foco narrativo 2) quem está contando essa história 3) de onde essa pessoa está falando. Gosto muito de desenvolver personagens, então preciso saber quem são as pessoas que habitam minha ideia antes de poder começar um rascunho, e depois de saber quem são elas, gosto de localizá-las no tempo e no espaço. Sobre a história em si, é um pouco mais complexo. Em geral, sei onde ela começa, e tenho uma vaga ideia de como termina. O meio é que vou descobrindo no caminho.
Quando comecei a escrever meu romance mais recente, Como se fosse um monstro, parti de uma ideia simples e fulminante: queria contar a vida de uma barriga de aluguel. Logo percebi que essa personagem, uma mulher pobre do interior de Goiás, viveria entre as décadas de 1980 e 1990. Sua história estaria sendo narrada em retrospecto para uma jornalista, uma moça mais jovem, que teria alguns motivos particulares para estar interessada na entrevista. Assim, a dinâmica, a voz narrativa e o espaço temporal foram definidos ali, só me restou desenvolver as protagonistas e todos os coadjuvantes que orbitariam essa realidade. Todo o miolo do livro, tudo que acontece com Damiana no seu processo de ser linha de produção de uma série de bebês, veio “no embalo”. A gente se movimenta, e a história vem.
Ainda que a pessoa que escreve tenha uma noção de todas as coisas que acontecem na sua história, a verdade é que escrever é um exercício de reconhecimento, mas é o reconhecimento daquilo que ainda não existe, portanto é catalogado em tempo real. Como a vida, de certa forma. Vamos supor que você esteja escrevendo um conto sobre uma mulher que decide se suicidar pulando nos trilhos do metrô, por exemplo. Você começa por descrever o momento em que ela compra o bilhete e passa pela catraca. No plano inicial, a estação estaria vazia, mas ao vê-la descendo as escadas, no entanto, você percebe que não é bem isso. De repente, você quer escrever sobre a multidão que se acotovela para entrar nos vagões, e a falta de espaço que acaba sendo mais claustrofóbica que a morte. De repente, um músico de rua toca a música que o avô de sua personagem gostava de escutar, o que a lembra de ser criança e comer queijadinhas na rua. Ao chegar ao fim do conto, talvez a sua personagem desista de morrer. Talvez ela pegue o próximo trem e, ao descer na estação seguinte, receba a notícia que uma outra pessoa, um outro desconhecido, se matou em seu lugar.
Enquanto escrevia esse texto, o amigo Bruno Ribeiro compartilhou uma citação do escritor E. L. Doctorow que descreve perfeitamente tudo que acabei de tentar explicar:
Essa é a sensação. Não dá para saber muito mais do que aquilo que está sendo colocado no papel, por mais que a gente planeje o caminho e tenha intenção de segui-lo. O futuro dos personagens é tão incerto quanto o nosso, e assumir o papel de deus é maravilhoso. Já matei gente que não queria matar, e deixei de matar outras por quem me apaixonei. De onde saem essas certezas, de onde vem esse conhecimento quase onírico que aparece na hora de escrever? Não faço a menor ideia. Só sei que é muito divertido, a parte mais legal de todas. Inaugurar um mundo novo é uma delícia. Tudo o que vem depois (editar, refazer trechos confusos, detectar incongruências, descartar páginas inúteis) é que é sofrido.
Pelo menos no meu caso, escrever pela primeira vez é quase mágico, fico em um estado de deslumbramento, parece que usei alguma droga. Só ao reler é que o encantamento passa, como na sobriedade: percebemos então as falhas, os trechos que achamos incrivelmente poéticos (e de repente descobrimos ser o cúmulo da breguice), o excesso de adjetivos, a horrenda construção verbal. É normal. Escrever um romance que seja bom também envolve desmontá-lo e refazê-lo várias vezes. Mas isso é papo para outro boteco.
Antes de ir embora...
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Passei muito tempo estudando "como escrever". Perdi meses e mais meses com cursos e livros sobre a escrita, sem nunca ter me dedicado ao ofício como deveria, me bastando apenas com a teoria. Recentemente descobri que escrever é um processo muito íntimo MESMO. Cada texto tem suas particularidades, cada pessoa tem seus processos e manias. E também aprendi que o que dizem por aí é real: só dá pra aprender a escrever enquanto se escreve. Desde que entendi isso, carrego comigo que um texto ruim é melhor que um texto que não existe.
que texto bonito!