
Ainda me lembro do primeiro livro que me fez chorar. Eu devia ter uns onze anos e fui completamente engolida pela vida do Zezé em Meu pé de laranja lima. As tragédias daquele menino se tornaram as minhas, chorei pelo português como mais tarde choraria pela cachorra Baleia e outros tantos personagens. Sempre penso no episódio como um divisor de águas no que seria, mais tarde, a grande reflexão sobre a minha própria escrita. Achei tão fantástico aquilo de me debulhar com as delicadezas de uma vida inventada que coloquei esse sentimento no topo do meu altar criativo. Por muito tempo tudo que eu quis, desesperadamente, era ser capaz de embutir dor em uma história, como se a habilidade de provocar a tristeza fosse a máxima qualidade de um escritor. Fui – e ainda sou um pouquinho – viciada em livros tristes. Não é por acaso que meu primeiro romance se chama Apague a luz se for chorar (a parte final, a que os leitores mais costumam gostar, eu mesma escrevi aos prantos).
A minha perspectiva em relação a isso tudo mudou, no entanto. Quero dizer, ainda amo um livro triste, mas são poucos os que me fazem chorar de verdade. O último foi esse romance aqui, lançado pela Todavia em 2021, que passou meio despercebido e para mim foi um tiro no peito (o final é um dos mais dolorosos e bonitos que eu já li na vida, mas acho que o livro em si tem graves problemas de edição que afastaram os leitores dele). Já não acho que chorar por causa de ficção seja um grande trunfo, apesar de me espantar quando isso acontece de forma genuína. Ainda gosto do meu primeiro romance, sei por que o escrevi, sei por que chorei escrevendo aquela carta do final e o que eu estava tentando deixar para trás ao criar aquela história. Eu era uma adolescente e uma jovem adulta muito deprimida. Agora, que estou bem e saudável, fico pensando na potencialidade dos outros tantos sentimentos.
Cheguei a lançar no Notes um comentário jocoso contra a imagem do “escritor torturado pelo sofrimento” que é tão comum e aceita, depois fiquei pensando que a minha opinião tem muito mais camadas do que as colocadas ali, e resolvi escrever este texto. Porque, é verdade, eu não acho que artistas precisam ser necessariamente infelizes ou perturbados mentalmente para que sejam bons artistas, nem que o sofrimento seja a única catarse possível de canalização para uma boa escrita. Mas é inegável que a experiência da dor rompe com muitas fronteiras de amadurecimento: se escrever é uma síntese da qualidade de sentir, os sentimentos incompreensíveis e dolorosos podem resultar em obras de grande teor literário justamente por sua capacidade de movimentar feridas, aquelas placas tectônicas que as pessoas carregam nas costas, que voltam a tremer quando encontram reflexo nas profundezas alheias. Acho que todas as pessoas que escrevem no fundo carregam uns filhotes de angústias muito próprios, além de uma sensibilidade que é necessária ao ofício de comover, motivo pelo qual batizei esta newsletter de Tristezas de estimação. E também continuo achando que as coisas tristes são sempre um pouquinho mais bonitas, talvez porque a gente passe muito tempo sem querer olhar para elas.
Já não concordo, no entanto, é com essa máxima de que o sofrimento é necessário para a criação. Acho uma ideia perigosa, que pode afastar muitas pessoas de uma existência pacífica e levar a comportamentos autodestrutivos. Afinal, alguém que acredita genuinamente que só escreve bem quando está infeliz vai continuar procurando por isso, ainda que inconscientemente. Estou com o Ailton Krenak, que diz: “os brancos que me perdoem, mas eu não sei de onde vem essa mentalidade de que o sofrimento ensina alguma coisa. Se ensinasse, os povos da diáspora, que passaram pela tragédia inenarrável da escravidão, estariam sendo premiados no século XXI. Eu não tenho nenhuma simpatia por essa ideia, não quero aprender nada às custas de sofrimento”. Da mesma forma, eu não tenho a menor simpatia pela ideia de que é só o sofrimento que faz um bom artista. Definitivamente, não é o tipo de artista que quero ser.
Entendo que algumas pessoas conseguem processar sua dor pela escrita. Não é o meu caso. Quando estou sofrendo – sofrendo de verdade – não escrevo uma linha. A prioridade é sempre acolher a minha alma. Eu preciso de tempo para superar, é o silêncio que acompanha meus machucados mais sérios. Jamais serei capaz de me “inspirar” em algumas histórias da minha vida, inclusive, justamente por não conseguir falar muito bem sobre elas. Mesmo em tempos frutíferos para a autoficção, não consigo escrever sobre o assalto no qual meu pai acabou matando duas pessoas. Não consigo escrever sobre a morte da minha tia, irmã gêmea desse mesmo pai, depois de uma devastadora Esclerose Lateral Amiotrófica. Se certas tragédias me acometessem, tragédias aqui impronunciáveis, talvez eu nunca mais escrevesse.
Na posição de leitora, por sua vez, também rejeito aquilo que chamo de “pornografia da dor”. Um livro que se ampara na beleza da tristeza perde o meu respeito quando pesa a mão no drama, quando quer provocar, artificialmente, aquilo que só é lindo quando vem de forma de natural. Hoje em dia não aguento ler sobre muita desgraça junta, até porque uma grávida tem um emocional perigosamente frágil. Vou blindar dessa discussão o clássico contemporâneo Uma vida pequena, mais conhecido como o romance mais destruidor e torturante de todos os tempos, até porque gosto desse livro e gosto da Hanya, embora reconheça que ele seja meio problemático. Se tivesse lido o romance hoje, talvez minha opinião fosse diferente. De forma geral, acho que, se você quer escrever histórias tristíssimas e trágicas, pode fazer isso de uma forma que seja original e não reducionista. Apelar a recursos como mortes, torturas, estupros e abusos em sequência já é algo com o qual não consigo simpatizar, e acho uma armadilha em potencial para quem está começando na ficção.
Isso vale também para nós, escritoras. A existência de uma mulher é atravessada por múltiplas camadas de dor e violência. A violência nos persegue desde a concepção. Ainda assim, eu me recuso a retratar as minhas mulheres sempre como vítimas inofensivas, sempre como protagonistas do sofrimento – até porque é isso que muitos esperam de nós. Somos seres humanos que escrevem e recusamos o rótulo de “literatura feminina” justamente porque não queremos cair em chavões. A nossa literatura é universal. Uma escritora pode escrever sobre o que quiser, sobre a dor e também o terror, a mágoa ou a felicidade de ser e estar.
Há muitas outras revelações internas que merecem ser contadas, é o que defendo hoje. Não sou mais uma pessoa assombrada pela infelicidade, embora ainda viva momentos de muita angústia, como todo mundo atravessando esse oceano existencial. A minha experiência com a cura de alguns processos mentais, que veio às custas de muita terapia, me fez perceber que há muitos outros aspectos interessantes a partir dos quais escrever. Sou obcecada por alguns sentimentos, vários deles inquietantes, que almejo condensar na minha ficção um dia: o arrependimento, a dúvida, alguns tipos de incerteza, o cinismo. A incapacidade do ser humano de enxergar o seu próprio fim. A maldade disfarçada de bondade. A persistência lenta e inexorável do amor. Entendo que a beleza pode vir da tristeza, da melancolia, mas também da doçura e da aceitação. No fim das contas, escrever e viver são processos simbióticos, tudo é feito de luz e de sombras, e me recuso a acreditar que “ostra feliz não faz pérola”. Sei lá, às vezes a ostra nunca teve outra opção. Às vezes, se tiver alegria, conforto e dignidade, a ostra vai aprender a fazer até ouro.
Lá vem o chapéu...
Esse talvez seja meu último texto antes da Cora nascer. Como já adiantei, deixei programado um material para ser publicado no meu puerpério. A maior parte dos textos vai somente para os assinantes pagos. É minha forma de vender a única coisa que eu tenho para vender. Criei uma oferta de 15% de desconto para esse período. Considere apoiar, caso goste do meu trabalho, de verdade. Assine aqui ou clicando nesse botãozinho aqui embaixo. Vai me ajudar muito nessa fase em que não conseguirei trabalhar.
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Na época de bailarina, dando meus primeiros passos na casa dos vinte, a diretora da companhia onde eu dançava nos pedia para expressar com o movimento nossas maiores dores e criar a partir de feridas. Hoje percebo claramente o quanto isso me enchia de insegurança e insatisfação comigo mesma, porque, por mais que eu procurasse, não tinha feridas abertas das quais pudesse extrair algo.
A grande dor que eu carregava, o luto pela perda do meu pai, estava enterrada fundo demais, eu ainda não tinha maturidade para ser acessa-lá.
Confesso que criei certa resistência a essa ideia de criar a partir do sofrimento, de ficar cutucando a ferida até ela purgar. Sei lá. Existem outros horizontes para onde podemos olhar, outras águas onde a criatividade pode se banhar.
Sempre bom te ler, Fabi.
concordo muito com krenak quando ele diz que não quer aprender nada às custas de sofrimento. entendo que sofrer faz parte da vida (há situações inevitáveis que nos causam dor, como a morte de uma pessoa querida), mas não é por isso que devemos romantizar o sofrimento. acredito que tendemos a isso porque a experiência da dor costuma ser mais duradoura do que a da alegria: levamos mais tempo para nos recuperar de uma dor do que os instantes em que somos felizes. é fundamental entender, aceitar e processar o sofrimento, sem jamais fazer morada nele.
aproveitando o espaço... que cora venha em boa hora! =)