Eu sou mãe. Ainda não me acostumei com esse fato, porque é recente, e leva tempo para a gente entender que fez uma pessoa. Mas aconteceu, eu queria muito que acontecesse, e às vezes esqueço o extraordinário disso. Porque uma pessoa – as mães sabem – é um mundo muito difícil de criar. Muitos avisaram que eu me sentiria cansada, e sim estou cansada, tão cansada que há toda uma parte do meu cérebro paralisada, economizando energia para coisas mais importantes, como produzir o alimento que essa criança precisa para desenvolver o cérebro dela. Uma amiga minha, escritora, perguntou se estou conseguindo ter momentos para mim, porque isso é importante; se está sendo possível acessar o território da introspecção, esse lugar que visito continuamente há trinta e dois anos, e que é o meu lugar favorito. E o mais curioso disso tudo é que não apenas tenho visitado minhas paisagens internas, como construí um novo jardim, e passo grande parte do tempo lá dentro.
Tenho pensado muito, matutado bastante – como diriam na minha terra original. Nunca pensei que essa seria uma das vantagens da solidão que é passar ao estado de mãe. Enquanto amamento, leio muito e cultivo também algumas ideias minhas, que talvez mais tarde virem textos (se eu der sorte, bons textos). Amamentar tem sido uma experiência surreal. É muito bom ser um mamífero e se dar conta disso, de que ainda pertencemos à natureza, de que ela veio cobrar o que deve ser cobrado, mas também é solidária à vida.
As longas madrugadas de amamentação são excelentes momentos para exercer minha criatividade. Criatividade essa que nunca foi tão útil quanto agora. Que nunca me salvou tanto. As palavras são tudo o que eu tenho para compreender essa fronteira que eu cruzei quando fiz uma pessoa. Eu disse para essa minha amiga que talvez escreva sobre isso tudo que tem acontecido, como uma forma de organizar meu deslumbramento. Tenho certeza que vai escrever, ela riu, porque me conhece há anos.
Então alguém perguntou, no formulário anônimo que mantenho para os assinantes das Tristezas, como alimento minha criatividade. “Que atividades você faz, o que costuma ler com frequência, se você faz exercícios de criação ou outras atividades artísticas”, perguntou a leitora ou leitor. Passei umas duas noites pensando nessa questão, duas noites refletindo sobre como alimento minha criatividade enquanto alimento minha filha. Então, me dei conta. O que alimenta minha criatividade é sobreviver.
Às vezes, acho difícil deslizar da cama para dar de mamar. Com frequência cochilo sentada durante o processo, só para acordar assustada e me sentindo culpada. Nos meus braços, Isabel nem desconfia desse cansaço todo, apenas ronca satisfeita, é uma bebê glutona. Mas outra noite cometi a tristeza de ver, antes de dormir, vídeos de uma guerra na qual estou tentando não pensar. No vídeo, uma mãe chora diante do cadáver de sua bebê e implora, aos prantos, que ela acorde para mamar. Quando está muito difícil sair da cama, eu lembro dessa mãe, do choro da mãe diante da filha morta, e agradeço pelo choro da minha filha que acorda.
Agora que passei ao estado de mãe comecei a sentir a dor de todas nós. A notícia de cada bebê morto em uma guerra, de um lado ou de outro, dói de uma forma quase física, dói de um jeito que eu procuro evitar. Não é por mal que evito e fujo para o meu lugar favorito, é só um mecanismo de preservação. Nesses últimos dias, tomei consciência de que viver é um privilégio, e poder criar é um privilégio maior ainda. Nos tempos difíceis, ter um mundo interno vem a calhar. Eu me desligo do cansaço, das preocupações, dos medos e das tristezas. O que não quer dizer que não os entenda.
Processos transformadores – como a maternidade, uma separação, uma mudança de país, o exílio ou o luto – alimentam a criatividade, porque produzir arte é também uma tentativa de entender aquilo que estamos nos tornando. Não significa que o sofrimento seja necessário, veja bem. Nem tudo precisa doer, embora as coisas tristes tenham essa tendência de serem mais bonitas. É a vida acontecendo que fermenta as ideias. Mesmo as pessoas que não fazem autoficção, como eu, encontram na literatura uma forma de descrever as experiências inexplicáveis. No meu caso, tudo isso vira uma longa história, e escrever sempre teve essa qualidade de acalmar meu coração partido.
Aos colegas bloqueados ou esvaziados de inspiração que volta e meia me escrevem para pedir dicas, costumo aconselhar que se desliguem da urgência de criar para viver um pouco. Se a criação está estéril, é porque alguma coisa na vida pede atenção. Não existe boa arte onde a vida não é exercida. Às vezes é questão de pegar o cachorro para passear e abrir os olhos para observar o mundo de outra maneira. Ou às vezes é preciso cuidar da saúde mental e física. Em alguns casos, os silêncios também ensinam muito.
Quando até existe a vontade de escrever, mas ainda não estamos prontos para arriscar, consumir a arte alheia é de grande valia. É o que também tenho feito, nesses longos dias que agora parecem grudados uns nos outros. Ando sempre com um livro a tiracolo, e mesmo sem gostar particularmente de muita coisa – o que chamam de ressaca literária – ainda assim aprecio a atividade. Uma hora encontro algum livro que me emocione, que fale comigo, mas tudo bem se não encontrar: é sinal de que estou precisando escrever aquilo que quero ler.
Com Isabel também tenho praticado meu quase inexistente talento musical, e estou apresentando para ela algumas das minhas músicas favoritas. Eu, que gostaria muito de saber dançar bem, adoro dançar com ela no colo. Me dei conta que quero muito continuar compartilhando isso com ela – essa qualidade de saber fugir para os lugares de dentro, de apreciar e cometer a própria arte. Sinceramente, acho que é uma das melhores coisas do mundo. Talvez porque seja uma forma de sobreviver a ele.
Antes de ir embora...
Na semana passada, conformei postei no Notes, comemorei meu primeiro mil reais em assinaturas pagas! Agradeço de coração a cada pessoa que assina a parte paga da minha newsletter e convido quem ainda não assinou a pensar nessa decisão com carinho. Além de receber um conteúdo muito legal, você ainda apoia o trabalho de uma mãe escritora.
Para comemorar, segue um cupom de desconto:
eu também recebo essa pergunta direto na caixinha anônima dos leitores. confesso que às vezes não me sinto à vontade para mandar o óbvio "vai lá viver a vida primeiro e depois vc vê"... mas nada como uma mãe para falar uma grande verdade (e você faz isso de um jeito tão delicado, sem perder a crueza). te admiro cada vez mais. abs!
Fabi, recomendo sobremaneira o livro "Pequenas resistências", de Rivka Galchen, que é EXATAMENTE SOBRE ISSO que você está falando.