
A primeira vez em que participei de um clube de leitura como autora foi no meio da pandemia. Havia então muitos encontros on-line, não sei se começou ali, mas participar dos clubes que adotavam o livro era uma das únicas atividades possíveis para divulgar meu romance de estreia, Apague a luz se for chorar. Achei lindo ver tanta gente disposta a discutir literatura naquela salinha de mentira do Zoom. Fiquei comovida e agradeci tantas vezes que a minha boca ficou seca. Até hoje não sei como sustentar a riqueza de uma leitura coletiva, queria participar de mais clubes, mas o combo de filhas (promoção, pedi uma e veio duas) impossibilita.
Há um ano participei de um clube presencial aqui em Brasília, ainda como autora. Eu havia acabado de descobrir minha segunda gravidez (literalmente, uma hora antes peguei o resultado do laboratório). Tentava controlar o enjoo enquanto me embasbacava com a quantidade de gente que ia chegando no salão alugado de um condomínio. Havia uma mesa com café e bolo, tão farta, parecia um buffet. A plateia era quase toda de mulheres, vinham com edições físicas do Como se fosse um monstro carimbadas de atenção. Não existe elogio maior para um autor do que ver o seu livro riscado de marca texto. Nesse clube específico chamaram uma psicanalista para debater o meu romance e também havia uma juíza especializada em casos de gestação terceirizada. Ao vê-las discutindo tive um momento muito forte de lucidez no qual percebi que talvez não fosse tão inteligente quanto elas pensavam. Quando eu abrisse a boca aquilo ficaria óbvio. A vontade de vomitar apertou.
É estranho ser ficcionista porque muitas decisões, talvez a maior parte delas, acontecem no terreno pantanoso da intuição. Não são escolhas racionais, ou pelo menos você não tem consciência do que está fazendo. A história vai aparecendo conforme você escreve e as explicações do movimento — a anatomia do percurso — por vezes saem pouco sofisticadas. Depois de pronta a gente gostaria de elaborar melhor, os mais empolados até fazem isso, mas a verdade é que as justificativas quase sempre são no estilo João Grilo: não sei, só sei que foi assim.
Tenho ficado cada vez mais interessada nessa parte da escrita que vem do inconsciente, uma coisa filamentosa, fabricada pelo mesmo material dos sonhos. Histórias feitas de elementos colhidos e apenas parcialmente processados, misturas encorpadas de obsessão e memória, não necessariamente refletindo o tema da maior relevância do momento. É gostoso experimentar aquilo que surge quando são deixadas de lado as burocracias. É quando me sinto mais artista, mais arquiteta de nuvens, vou emendando uma coisa na outra, pescando os pedaços de um quebra-cabeça que já foi montado e ainda não descobri o todo porque a velocidade do meu raciocínio lógico não acompanha o ritmo da imaginação. Não sei como explicar, não sei se faz sentido para quem não escreve, mas é possível ver primeiro só com os olhos de dentro, sentir antes do entender. Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. Saramago era bichão, sabia disso muito.
Dizem que Renato Russo, na adolescência, gostava de imaginar as entrevistas que daria quando fosse famoso. Adivinhava a comoção causada por suas letras. Penso que muitos escritores padecem de hábito semelhante, há uma tentação gritante de escolher seu tema e antever o impacto do asteroide. Muita gente pensa demais na importância do livro, de como será recebido e resenhado, pensa nas chances de publicação ou de figurar em listas, tudo antes mesmo de escrever. O resultado pode ser estranho: uma escrita cheia de intenção e verniz, mas com pouco charme. Se a gente não tomar cuidado, vira uma praga.
É evidente que a escrita é também um trabalho e, sendo um trabalho muitas vezes cheio de buracos, não sobrevive apenas de lirismos. Há escolhas estéticas formais, precisamos delas, esse tijolos de construção da voz narrativa, mas pensar demais pode atrapalhar. Com frequência só é possível encontrar o assunto no meio, em uma compreensão tardia e arrastada, primeiro o trovão, depois o raio. Às vezes a coisa voa quando você solta a mão e deixa o inconsciente trabalhar um pouco. Todos os dias rezo para encontrar ouro por puro acaso. Meu jeito de aumentar as probabilidades é escrevendo.
Não sou contra planejamento e traçados objetivos, que fique claro. Quando começo a escrever tenho sempre uma noção dos personagens, o arco da história ou mesmo os temas gerais de interesse. Com meu novo romance, eu sabia pelo menos duas coisas: queria fazer uma taróloga e queria mexer com crise climática. O resultado, como sempre, veio mais abrangente, surgiu um cara insuportável, um idiota, e eu tenho um fraco por escrever gente imperfeita e idiota. O produto final é sempre meio torto, não dá para saber o que sobra do processo criativo sem passar por ele, a transformação que a escrita causa, é uma escavação arqueológica ao contrário, vamos reconstituindo os ossos do futuro.
O inconsciente tem muita agência. Nem todo autor percebe como o cérebro faz associações. É muito comum, por exemplo, começar uma história batizando personagens com as mesmas iniciais. Cria uma personagem chamada Paula, de repente bota o marido dela chamando Pedro e quando vê o amante vira Pablo. Coisas assim sempre corro para consertar. De resto, deixo o rio seguir seu curso. Quero ver onde vai dar. Quero calar aquelas vozes que elegem os livros de maior importância e podem diminuir a vontade de escrever essa coisa menor e desimportante. Não quero fazer livros importantes. Quero escrever histórias.
Por isso é sábio reconhecer nosso lugar. Nem sempre é participando do debate ou da fortuna crítica. Aos escritores resta escrever, sem pensar no mercado e nos leitores e na análise que farão de nós mais tarde. Deixar o inconsciente assumir as rédeas um pouquinho, exercer a liberdade de imaginar, ter menos azedume e preocupação com as tendências, não usar o suco gástrico para remoer dúvidas que no fundo nem importam. Seja uma boa literatura ou não, pelo menos será alguma coisa, temos um papel nisso, ainda que pequeno, preciso acreditar no papel disponível para quem quer se inscrever nessa roda. A vida nunca mais será a mesma, mas é bom tentar. Eu acho.
aaah fabi, eu na minha ânsia de iniciante te leio sempre como quem vê à frente na estrada uma figura maior, e paciente, que vai iluminando os buracos 💌
que legal esse texto, Fabiane. Barthes ja dizia em "A preparaçao do romance" que é o texto que vai se escrevendo sozinho, e o autor é apenas o veiculo pelo qual o texto nasce. deve ser muito interessante ver que durante a leitura de nossos textos muitas outras discussoes que nem imaginavamos vqo surgindo :)