Quando eu tinha 13 anos, minha família sofreu um assalto horrível, cujos traumas carrego até hoje. Mas não é sobre isso que quero falar. É que, pouco tempo depois do acontecido, meus pais receberam a visita de alguns parentes distantes do Rio de Janeiro, um pessoal com quem perdemos contato, não me lembro sequer de como se chamam. Sei que o casal tinha uma filha mais ou menos da minha idade, naturalmente empurrada para me fazer companhia enquanto os adultos discutiam os trágicos acontecimentos recentes. Eu morava em Formosa, a pequena cidade do interior de Goiás onde cresci. Surpresa com a visita, lembro que recebi a minha prima com um sorriso que foi mal correspondido. Logo apresentei meu quarto e meus livros, como a nerd que era. “O que é isso aqui?”, a prima logo perguntou, com nojo, apontando para um copo cheio de marrom glacê com creme de leite que eu havia esquecido em cima da escrivaninha, uma iguaria que comíamos muito na infância.
“Marrom glacê. É doce de batata”, respondi. “Você nunca comeu?”
“Não.”
“Quer provar?”
“Não.”
Não me lembro de muito mais, exceto da sensação dolorosa de deslocamento e vergonha. Sei que a minha prima era bonita, tinha cabelos lisos, vinha de uma família rica e praticava hipismo em um haras. Com seu sotaque carioca, era muito distante de mim, a menina ainda desengonçada, com o rosto coberto de espinhas e um cabelo que não amansava. A prima achava o doce que eu comia nojento e olhava ao redor do meu quarto como se fosse o último lugar do mundo onde quisesse estar. Demorei muito tempo para entender melhor essa experiência, muitos anos depois que eles foram embora e nunca mais voltaram para outra visita. O sentimento continuaria familiar, mas foi ali que entendi, pela primeira vez, que era uma menina caipira.
As pessoas que cresceram no interior, que são pretas ou vieram de uma classe social inferior sabem o que é esse sentimento de deslocamento persistente diante do convívio em novas esferas. Foi a mesma coisa que senti quando ingressei na Universidade de Brasília para cursar jornalismo, ao lado de candidatos que haviam estudado nos melhores colégios da capital e não só andavam de avião com frequência, como já tinham visitado outros países. É o mesmo sentimento que Anne Ernaux descreve em seu livro O Lugar. É como se todas as outras pessoas, nossos supostos iguais, falassem com naturalidade uma língua que ainda precisávamos nos esforçar três vezes para aprender. Nunca nos habituamos.
No meu caso, que sempre soube que queria ser artista, escrever e publicar livros, minha origem parecia um obstáculo. Nas histórias que escrevia na infância, nunca dava nome às cidades. Tudo que eu lia era estrangeiro, até os livros nacionais. Como nas novelas, os romances brasileiros aos quais eu tinha acesso se passavam no Rio de Janeiro ou em São Paulo, e eram sempre sobre pessoas mais parecidas com a minha prima. Quando muito, pintava por lá um Érico Veríssimo ou uma Cora Coralina. Eu seguia me sentindo cada vez mais caipira.
Acho que Guimarães Rosa foi o primeiro autor a me mostrar que o Brasil era gigantesco e carecia de exploração literária. Ao ler Manuelzão e Miguilim, lembro de ter chorado por reconhecer naquelas novelas tristes a linguagem e a história do meu povo. O jeito como Guimarães escreveu o sertão e o sertanejo me reconfortou. Nossa existência não era um mito a ser ignorado, por mais que parecesse. Descobri que eu também podia escrever a partir de onde vivia e alguém, em algum lugar, poderia querer ler.
Com a maior parte da produção literária e do mercado editorial concentrada no Sudeste, é natural que as obras que falem de fora – do mesmo país, só de outras regiões – sejam sempre encaixadas nesse rótulo exótico do regionalismo. Por muito tempo, eu mesma acreditei que estivesse fazendo literatura regionalista, por localizar meus personagens em Goiás e Brasília, até assim defendi. Agora não vejo assim. Escrevo literatura brasileira. Só é um Brasil diferente.
Como uma autora do Centro-Oeste publicada por uma grande editora do Sudeste, apesar do meu pouco tempo de estrada, muitas curiosidades já aconteceram nesse intercâmbio de culturas. Na edição do meu primeiro livro, Apague a luz se for chorar, por exemplo, precisei explicar mais de uma vez que o personagem que “subia as 700” estava atravessando uma quadra de Brasília, com seus endereços numéricos. Mais engraçado foi demonstrar o mesmo conceito à tradutora querida que verteu o conteúdo do livro para o polonês.
Quando escrevo, faço questão de situar meus personagens entre os meus, de relatar o Cerrado enquanto o enxergo. Não sou a primeira, nem serei a última. Tenho como inspiração autores como Maria José Silveira, André de Leones e Paulliny Tort, gente que entende do que estou falando, porque vieram do mesmo lugar. É uma escolha consciente, política, mas eu também não saberia fazer diferente. Resta brigar por um espaço, para que essas histórias também sejam ouvidas e valorizadas, para que não queiram tirar o rastro do nosso sotaque nos diálogos. Fiquei boa em escrever diálogos, aliás, quando comecei a ouvir melhor as pessoas que me cercam. No meu novo romance, Como se fosse um monstro, há um trecho que adoro por demonstrar exatamente a cadência da fala de uma pessoa goiana. Peço licença para reproduzir aqui (se quiser, pode pular):
“— Você já pensou nas crianças? Na vida que elas tiveram? Em quem elas se tornaram e tudo mais? — Gabriela perguntou. Aquela era a única pergunta que queria fazer desde o começo da entrevista. A única que importava.
— Às vezes — Damiana confessou. — Mas nunca esquentei muito a moleira com isso. Não tinha como saber. E foi a melhor coisa para elas.
— Como assim?
Damiana a olhou direto nos olhos, de um jeito que fez o rosto de Gabriela queimar. Então apontou lá para fora, em direção às árvores.
— Sabia que tem uns passarinhos aqui na roça que deixam ovo no ninho dos outros? Vão lá, botam o ovo, pegam voo, somem no mundo. Deixam os outros passarinhos chocarem por eles. Isso acontece demais. Não faz diferença para os filhotinhos. Nem para os que ficam no ninho chocando.
Gabriela não estava entendendo aonde ela queria chegar, então deixou que continuasse o raciocínio.
— A melhor coisa foi essas crianças não terem me conhecido — concluiu, então. — Eu não podia dar o que elas precisavam. Não ia ter como dar amor, porque nunca tive muito. Vida boa também não ia ter. Com certeza cresceram bem, tiveram estudo, viraram gente direita. Eu nunca vou saber, mas fico feliz porque foram para famílias que queriam elas. É isso que importa, fia. Alguém te querer e cuidar de você.”
Tenho muito orgulho de escrever a partir do meu lugar no mundo. Não sou mais a menina que um dia teve vergonha de comer marrom glacê com creme de leite. De certa forma, perdi muita coisa boa que ela tinha. Crescer também significa ir abrindo mão de quem a gente era. Que bom, no entanto, que existe uma forma de lembrar.
Para mim, a literatura é um jeito de registrar a nossa cultura, o nosso povo, e de todos esses modos diferentes de existir.
Foi muito bom ler esse texto. Eu decidi escrever meu primeiro livro (ainda não publicado) um romance adolescente, e a grande maioria (esmagadora) de romances adolescentes escritos no mundo indie se passam no estrangeiro. Inúmeras escritoras daqui escrevem como se vivessem nos EUA, e também é de lá a maior produção desse gênero, o tal YA. Eu sou de Fortaleza-CE, e é aqui que meus personagens vivem. Comigo. Vou arriscar. Quero escrever minha cidade, meu estado. Há amores em outras cidades desse Brasil precisam ser contados! Obrigada pela reflexão! Devoro cada texto.
Não dá pra defender uma pessoa que não se delicia com marrom glacê - especialmente aquele da lata metálica que precisava de abridor.