Quando se trata de escrever ficção, existe um embate entre duas forças. A primeira é o lado racional, pragmático, que faz escolhas cerebrais, decidindo por um certo narrador em vez de outro, por escolhas estéticas que traduzam o projeto. A primeira força se ampara e se guia pelo planejamento, decidiu escrever uma história sobre tal assunto e sabe o que essa história vai abordar. Já a segunda metade dessa equação é o lado inconsciente do processo, só acontece se você escrever. É o que te leva para lugares inusitados, fazendo perceber que não dá para planejar tudo, e que as cenas vão aparecendo conforme o avanço. O lado inconsciente traz à tona detalhes muito reveladores: você pode descobrir, por exemplo, que as suas personagens são todas do interior, porque afinal de contas você é do interior, e essa marca nunca saiu da sua alma. Quem sabe a sua protagonista beba café sem açúcar, como a sua avó, ou tenha um narigão charmoso de uma atriz que você adora. Não dá para escrever só usando esses afluentes da memória, é claro, assim como não dá para alcançar um bom texto apenas fazendo escolhas cerebrais. Uma força precisa da outra, e as duas partirão do seu comando. Nesse aspecto, posso dizer que é sempre pessoal. A autoria é uma questão pessoal. O que não quer dizer que seja autobiográfica, veja bem.
Vou dar um exemplo muito legal. Uma das escritoras que fazem mentoria literária comigo está escrevendo um livro de contos. Ao me enviar o projeto, ela disse que a ideia era que todas as histórias trabalhassem de alguma forma arquétipos femininos e complexos de uma deusa da mitologia grega. Ao ler os contos, contudo, não consegui distinguir claramente essa intenção inicial, mas percebi que pelo menos três das histórias tinham em comum o tema da imigração e protagonistas com um senso de deslocamento no mundo. Quando perguntei sobre isso, ela admitiu que esse é um assunto pelo qual anda obcecada. Pois está aí o verdadeiro fio condutor do seu livro, eu respondi. O melhor caminho para desenvolver uma voz autoral é escrever sobre as próprias obsessões.
Acho que hoje em dia existe uma grande confusão entre escrever a partir de um olhar e escrever sobre si, um debate que tem alcançado inclusive o mundinho de newsletters do Substack. Como já mencionei algumas vezes aqui, tenho muito medo que a recente onda de popularidade da autoficção chute a imaginação ainda mais para escanteio. Não sei se é um zeitgeist desse século autocentrado, mas as pessoas querem falar sobre suas vidas, querem explorar as memórias íntimas, e sentem que essa é uma ótima forma de se conectar com o outro – e não há nada de errado com isso. Essa conexão, entretanto, não precisa partir da realidade para acontecer. Ela pode existir em um lugar muito mais imagético, que é a fronteira entre aquilo que foi vivido e o que foi puramente inventado.
De certa forma, quando estamos escrevendo, sempre começamos partindo daquilo que é conhecido. O primeiro texto que escrevi na vida, ou o primeiro do qual me lembro, era um conto chamado Um dia na roça, que falava, bem, sobre meu dia na chácara do meu pai. Depois comecei a escrever inúmeras histórias, quase todas cópias descaradas das coisas que eu lia. Muitos anos mais tarde arrisquei a desenvolver meus próprios personagens, uma mistura das referências com pessoas do mundo real. Fui criando a trincheira onde gosto de me enfiar quando estou produzindo minhas ficções. E o que meus textos de hoje têm em comum com o primeiro texto que escrevi na vida? Bom, quase sempre exploram paisagens ermas e rurais, mesmo quando situados majoritariamente na cidade. Já tentei me comprometer a escrever um texto que não tivesse uma roça ou um lugar perdido no meio do nada e fracassei. É na experiência palpável do Cerrado que as minhas palavras foram fabricadas, afinal de contas. A fruta nunca cai longe do pé.
Isso não significa, no entanto, que todas as minhas histórias tenham acontecido. Na verdade, é precisamente o contrário: pouquíssimas são baseadas em casos reais. A maioria eu inventei mesmo, às vezes a partir de pensamentos aleatórios, depois de ler matérias de jornal, em momentos de transe provocado por substâncias suspeitas (hehe), ou impulsionada por um sentimento que eu não sabia como sentir. O puerpério me deu ótimas ideias para meu livro novo, por exemplo, ainda que não seja um livro sobre maternidade.
Eu queria muito que mais pessoas entendessem que é possível fazer trabalhos relevantes e espetaculares que sejam pura mentira. Que escrever algo verdadeiro não significa escrever apenas sobre coisas que aconteceram nessa vida, nesse espaço, com você ou alguém que você conhecer. Sempre vou advogar pela ficção e essa grande liberdade que é trabalhar com tudo que você gosta, tudo que te incomoda e te faz sentir coisas. Escrever a partir de um olhar pessoal, afinal de contas, também abarca as percepções provocadas por outras obras literárias, pela música ou por viagens alheias. É encontrar e abraçar tudo que é seu. Mesmo que não seja.
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Passando para lembrar que ainda dá tempo de se inscrever no meu curso online sobre Como escrever e publicar um romance contemporâneo, que será amanhã à tarde. Se você não puder participar ao vivo, não tem problema, logo depois enviarei o link da gravação. Durante a aula falarei sobre vários aspectos da construção de um romance, inclusive sobre o tópico da autoria, que é o assunto da news de hoje. Inscreva-se aqui.
Há pouco tempo lancei um livro de crônicas. Agora estou trabalhando em uma autoficção e estou gostando muito da ideia de criar, “ficcionar” sob fatos reais, de misturar esses dois mundo. Quando um fato sai do acontecimento real e passa a ser uma história, tem aí um componente de ficção, uma “versão” das coisas que estou achando interessante experimentar. Mas eu amo histórias tão bem inventadas que até parecem verdade, como as suas ❤️.
o problema não é ser autoficção, é ser um texto pobre, ruim, mal trabalhado. não há nada de errado quando a autoficção é bem feita.