Nunca fui de escrever poemas. Em um dos meus primeiros blogs, uma espécie de slogan anunciava: sou prosa, não faço poesia. Isso porque sempre achei a poesia uma coisa dificílima de fazer, ainda acho, tenho vergonha de construir versos e do quão fáceis os versos podem desmoronar (na prosa, ao menos, tenho mais chances de convencer). Na semana passada, no entanto, um poema me aconteceu. Eu tinha uma palavra, um tema para onde mirar – a Circulares, uma das livrarias de bairro mais charmosas aqui de Brasília, me pediu um textículo para integrar sua agenda 2025, o material vai contar também com outros autores da cidade. Pois bem, minha palavra era lama. E eu, que não faço poesia, fiz disso um poema.
Achei curioso que tenha sido assim, agora acho que não foi por acaso. Tenho passado por tantas mudanças internas e externas que é natural que a minha linguagem se transforme, que ela encontre caminhos mais suaves, estou sentindo demais para me restringir. Escrever sempre foi esse acessório de interpretação de vida, que carrego nas costas com muita persistência, porque me ajuda a passar pela realidade. Agora que estou vivendo uma das fases mais intensas, é interessante ver como minhas palavras vão sendo processadas, adequando-se ao esquecimento da gravidez, à falta de respiros de uma rotina cansativa, a um cogumelo explosivo de hormônios, ao medo do futuro. Estou mudando. Meu jeito de escrever também.
Quando você escreve e faz disso uma prática de vida – o que é um pouco diferente de ser um mero objetivo – essa prática cresce e caminha com você. É por isso que é tão esquisito revisitar textos antigos, é como confrontar uma versão do passado. Eu, pelo menos, sinto vontade de revirar os olhos até a nuca quando faço isso, acho constrangedor encarar a mim mesma, e vou dizer que sinto isso até relendo meus livros publicados. Essa mudança de perspectiva vai além das habilidades técnicas. Claro que, na adolescência, eu cometia erros que hoje já não cometo. Mas a transição é um pouco mais profunda. É o método. Se antes eu gostava de planejar histórias (de suspense, em sua maioria), de pensar em personagens ardilosos e em tramas originais, quase sempre buscando o choque da expectativa, hoje entro em um estado muito mais de paisagem, na qual deixo que os pensamentos fiquem ali pastando no fundo, até que eu sinta vontade de colher um deles. Escrever assim é menos objetivo, mais fragmentado, mas é a prática possível agora, já que o meu cérebro se dividiu em muitos. Já que agora sou mãe de duas, e nem consigo elaborar direito sobre o quão profundamente isso me afeta.
Se por um lado essa mudança chegou a me amedrontar – várias vezes escrevi sobre o medo de não conseguir mais escrever um livro na vida –, por outro me entusiasma a forma nova de ter ideias. Não é mais tão fácil, nem tão prático. Lembro que, em meados de 2018, tive uma ideia concreta e pesada feito um bloco de tijolo. No meio do aeroporto, lendo uma matéria sobre mulheres que são barrigas de aluguel clandestinas, decidi que escreveria a história de alguém que aluga seu corpo. Logo depois, comecei a rascunhar Como se fosse um monstro. Embora os vários temas que orbitam o livro fizessem parte da minha vida naquele momento, como a própria decisão de ser mãe, o objeto da trama foi muito concreto e específico, e a minha protagonista veio praticamente pronta.
Com o meu novo romance, entretanto, a coisa foi bem diferente. Para começar, escrevi um livro em sete meses, entre as brumas do puerpério. A ideia nem era uma ideia pronta, ela era um recorte de vários sentimentos, que fui alimentando durante a gravidez da Isabel. Coisas sobre as quais eu queria escrever. Quando olho meu caderno de ideias – todo escritor tem um caderno ou um arquivo de ideias – vejo os fragmentos do romance nascendo em palavras esparsas. Romance de formação, apocalipse climático? – escrevi em um dia. Uma vidente! – alertei em outro. A protagonista do meu novo livro é uma taróloga, os desvarios do clima são o pano de fundo. Não há uma trama de suspense, ou um plot twist. As coisas acontecem, e a forma como essa história veio foi bem diferente, bem mais fluida e orgânica. Esse jeito novo de produzir me deixou um pouco insegura, mas, de acordo com os primeiros leitores, o resultado não saiu mal.
Apresentar alguma coisa diferente ao mundo pode ser muito amedrontador. Eu também vejo, no entanto, como uma forma de evolução. Se eu não permaneço igual, se o espelho me diz que eu não sou mais a mesma (com todas essas rugas e essa flacidez, essa barriga enorme, as estrias e as olheiras permanentes), é natural que o meu jeito de criar se transforme junto comigo. E nem vou entrar aqui no mérito do por que me dou ao trabalho, mesmo nas condições mais difíceis. Isso não está em discussão, eu preciso escrever. Eu não preciso publicar ou tentar divulgar meus livros a torto e a direito, ou sofrer porque não estou alcançando lugares que supostamente deveria alcançar. Da escrita preciso sim. Ainda que eu não escreva, estarei escrevendo, e pode ser que eu fique sem fazer isso por vários dias, até que acorde de madrugada, de supetão, para colher um poema.
Sempre falo, nos meus cursos e oficinas, sobre a importância de encontrar a própria voz, de ter um projeto próprio. Agora vejo que preciso melhorar um pouco a exposição desse conceito, para que as pessoas não me levem a mal, nem se cobrem loucamente em busca de uma solidez temática que pode não existir. O que eu quero dizer, quando falo sobre assumir autoria e desenvolver seu estilo, é sobre entender o seu processo de vida, e o que você pode trazer de mais original para a mesa. É quase impossível ter uma ideia original, se pararmos para pensar. O que é original é a forma como apresentamos as ideias, como trazemos ela para nossas vivências, quando fazemos dessa ideia um terreno nosso, compreendendo a escrita como uma prática aliada ao viver. Escrevo as coisas que escrevo porque a vida me aconteceu de um jeito que me inspirou a isso. Recebi minhas primeiras referências dos meus pais e da minha família, depois encontrei muitas outras. Desse caldo que sobrou, acrescentei o processamento ficcional das experiências. Na minha paisagem – o Cerrado – encontrei um plano de fundo. O resultado é que minhas histórias são profundamente minhas, mesmo que não sejam coisas que me aconteceram na vida real. Se a gente pensar na originalidade como algo individual, de caráter privado, escrever fica menos excessivo e até mais fácil.
Não sei se é coisa da minha bolha, mas nos últimos dias vejo muita gente reclamando e elaborando rotas de fuga das redes sociais. Com ódio das redes sociais. Leio que brain rot é a expressão do ano, porque tanta informação tem deixado os cérebros apodrecidos e coisa e tal. Eu também me incluo nessa. Com felicidade consegui deixar o Twitter, mas o Instagram ainda me consome de vez em quando. Na última semana, consegui perceber o que mais me irrita nessa onda de Reels e Tiktok, que não é nem o círculo vicioso da dopamina, nem o caráter apodrecedor dos algoritmos: é a uniformização. O problema é que é tudo muito igual, os roteiros e a estrutura do que viraliza, os “criadores de conteúdo” precisam se submeter a uma fórmula para aparecer. Acho engraçada a pressão que essas pessoas sentem, tenho um pouco de pena delas, de quão pouca liberdade para criar têm esses criadores.
Nessa corrida imediatista e maluca, encontrei um vídeo que me deixou embasbacada. Era uma esquete de humor sobre maternidade (o demônio algoritmo sabe que é isso que me atrai agora). Acontece que a “criadora” em questão, uma brasileira, estava reproduzindo na tela a ideia de um vídeo que eu já tinha visto em inglês. E quando digo reproduzindo, quero dizer que ela copiou mesmo, na cara dura, todos os diálogos e até a roupa, sem dar créditos ao vídeo original. Até rolei um pouco entre os milhares de comentário, para ver se encontrava alguém dizendo “ei, essa ideia não é sua”. Mas é claro que não encontrei nada disso. Em terra de Instagram, quem sabe copiar é rei. Mas eu fico pensando. Essa gente não fica com a consciência pesada nunca???
Morro de medo de plagiar alguma coisa que eu gosto muito sem querer. É um medo natural, acho que muita gente tem. Você está escrevendo, entra em uma vibe, no fluxo das coisas, para roubar uma coisinha é daqui para ali. Acontece. Agora, copiar o trabalho dos outros conscientemente, tentar surfar na onda alheia, é uma coisa que me traz um desprezo gigantesco. Isso vale para produtores de conteúdo e também para escritores que só pensam em escrever livros e textos que surfem em “ondas do momento”. Pode até ser bem-sucedido, em um primeiro momento, e é provável que seja. Alimentar o deus mercado com aquilo que o deus mercado pede é uma receita que costuma dar certo. Mas eu duvido muito que o movimento perdure a longo prazo. E ser artista é um compromisso de longo prazo. Afinal, é a nossa vida aqui em jogo. Ela costuma durar um bocado. Se você tiver saúde e nada te acontecer, é claro. Quem copia, quem cria só com base no que é lançado e dá certo, não costuma ir longe. Os que ficam (às vezes, sem receber uma centelhinha de holofote) são os que entendem que tudo muda. E é a impermanência que controla o jogo. Não a gente.
Originalmente, escrevia prosa claramente. Depois, eu nem sei o que escrevo, a narração continua ali, mas tudo fragmentou, a fragmentação virou parte de mim, engolir palavras, e alguns momentos certas palavras nem mesmo chegarem a nascer. Recebi um diagnóstico, de algumas amigas, parte delas escritoras, que é uma revelação assombrosa para mim: poeta. Assombrosa porque passei a escrever assim antes mesmo de começar a ler poesia que faz só um ano, sou uma bebezinha como leitora de poesia sempre digo e se sou uma bebezinha como leitora de poesia, como posso ser poeta? Absurdo. E então agora surgem coisas que definitivamente não são narrativas e digo: acho que cometi um poema. Porque é totalmente sem intenção. O mesmo aconteceu com a criação de conteúdo, a plataforma mudou, o instagram, ou eu mudei, ou as duas coisas, já não sei dizer, e esse lugar, o substack, virou meu refúgio da velocidade, do infinito, do excesso de quantidade de informações, quantidade de repetições, quantidade de estímulos que me devastaram tanto, acho que é hora de dar adeus a essa terra que me arrasa e parece ser arrasada aos meus olhos. É difícil de abandonar algo de tantos anos, mas me sinto tranquila aqui, lendo bons textos como esse seu por alguns minutos e não mais segundos.
Leremos o poema??
Agora uma dúvida que eu tenho, sobre a construção de histórias. Você falando do seu novo romance, fiquei pensando: quando você começa a escrever, já sabe a estrutura da história? Tipo, vai partir desse ponto A pra chegar ao ponto B?