Nessa semana o primeiro dente da minha filha começou a apontar, uma minúscula pedrinha de cálcio que me deixou cheia de orgulho e também tem acabado com qualquer possibilidade de descanso. Quem já passou pela delícia de fabricar um pequeno ser humano sabe que se trata de um estado de obra permanente e a gente anda por aí com placas de desculpem o transtorno penduradas nas olheiras. Não durmo há tanto tempo que isso deixou de ser uma novidade, mas nos últimos dias tem sido pior. Com tanto sono e exaustão acumulados, fico rabugenta. Quando estou rabugenta, não vejo muita graça na vida. Nem devia estar escrevendo, escrevo de teimosa.
Talvez seja o meu momento de rabugice, mas também estou desiludida com a literatura brasileira contemporânea. Escrever é uma coisa, publicar é outra, tentar se firmar como autor ou autora é algo completamente distinto dos dois. Muito pouca coisa depende de você, é o que sempre repito, a maioria depende de quem você conhece. Também tenho ficado completamente sem paciência com a falta de qualidade do que leio, com o espaço que a ficção tem perdido, agora parece que a figura dos autores é mais importante do que o conteúdo que escrevem, e os livros são fabricados e procurados com mensagens pré-fabricadas. Estou com saudade de acessar o brilho, de me sentir enfeitiçada, já não sei se consigo fazer melhor. E se eu fizer, que diferença vai fazer?
Nessa semana estou tão rabugenta que não consigo acessar a minha crença de que a arte importa.
São aqueles dias em que os dias todos pesam um pouco mais.
Meu livro novo chegou a 75 páginas. São 18.688 palavras. Estou mais ou menos na metade, pelos meus cálculos. O meio é a parte mais difícil de qualquer processo. Não tem o charme dos começos, que são frescos e não cheiram a arrependimento. Nem trazem a revolução dos finais – o fim pode trazer alívio ou dor, com frequência os dois ao mesmo tempo, mas tem esse privilégio de acabar. O meio é um lugar complicado com paredes mofadas, ali as esperanças são trancadas no banheiro e morrem asfixiadas, por isso é no meio que as pessoas costumam desistir.
Na metade do livro a gente costuma fazer perguntas que não deveria fazer. Acha que não está apenas ruim, está muito ruim. Pensa se não seria o caso de ter usado todo esse tempo para outra coisa – 18 mil palavras, meu deus, quanto espaço da minha vida eu gastei, eu poderia só ter dormido. No meio a gente olha para aquela coisa que não é um bebê com os dentes nascendo nem um senhor de idade e pensa se aquilo ali vai valer a pena.
Não tenho certeza daquilo que estou fazendo e é uma sensação horrível de tão conhecida. Criar envolve tanta incerteza porque, pensa bem, você está tentando fabricar o que ainda não existe. Criar uma pessoa e um livro ao mesmo tempo, então, é uma receita para enlouquecer bem devagarzinho.
Não desistirei, deixo bem claro, porque fiz um pacto comigo mesma, e porque é preciso terminar os livros para saber se funcionaram. Com a criação da minha pequena pessoa, acho mais fácil: sinto tanto amor, vejo tanta beleza nela, que uma gengiva inchada é só um capítulo difícil. Estou aprendendo a ser mãe, mas não duvido de que isso é o melhor que já fiz.
Com o romance é mais difícil porque o meu amor pode vacilar. É um amor ingrato, que não me traz muitas recompensas, nos meus capítulos difíceis duvido de tudo, inclusive da minha própria capacidade.
18 mil palavras, cara.
Só vou comemorar depois que passar.
Quero te dar um abraço e mandar um pouquinho de amor. É admirável demais criar um bebê e um livro ao mesmo tempo, acho que quase ninguém consegue esse feito. Me lembrei de um livro curtinho e ilustrado do Neil Gaiman chamado "Arte Importa". Pode te ajudar nessas horas de descrença com a arte :)
Receba um abraço bem apertado, flores (lavandas) e um pouco de música clássica. Um combo restaurador.