Sou casada com uma pessoa que pensa de um jeito completamente diferente do meu. Não me refiro a conceitos políticos ou de visão de mundo, e sim ao pensamento no seu estado mais natural. Para entender as coisas, preciso primeiro imaginá-las. Sem esse esforço primário de recriação, nada se agarra na minha mente. Eu penso em imagens, palavras e histórias. Funciono melhor na abstração, na idealização de conceitos, preciso construir mundos inteiros para captar uma mensagem. João, por outro lado, tem a cabeça metódica de engenheiro. O raciocínio dele é comprido, linear e tem as arestas muito bem aparadas. Ele diz que não tem imaginação. Ainda assim, é uma pessoa cheia de ideas que chegam por outras vias – o que me faz olhar com mais atenção para minha criatividade, como uma pessoa que levanta o capô da própria existência.
Claro que em fatores de relacionamentos algumas vezes entramos em conflito por essas diferenças no câmbio sentimental. João, por exemplo, com frequência se esquece da nossa data de casamento. Outro dia relembrei que foi em 14 de outubro. Eu sabia que era um múltiplo de sete, por isso me confundi, ele se justificou. Isso não significa que eu tenha menos importância para ele, eu sei. São também essas pequeninas revelações de sua cabeça – um prédio cheio de homenzinhos com pranchetas medindo coisas – que me fazem amá-lo todos os dias um pouco mais.
Acho muito chato quem gosta de conviver e se relacionar apenas com o semelhante. Porque é nessa troca com sapientes de outra grandeza que aprendemos coisas fundamentais sobre o processo de compreender a vida. E também é conversando com gente diferente que acessamos um território estrangeiro de pensamentos muito importante para refrescar as nossas concepções.
Não faz muito tempo, João veio me explicar que as nuvens têm nomes (algo que eu não sabia até então). É pelo formato, pelas características, alturas e outros fatores que as categorias foram determinadas. Ele também mencionou que a neblina, muito comum na região de Brasília em que moramos, também é um tipo de nuvem. Estamos dentro de uma nuvem, ele diz às vezes, quando estamos voltando para casa, sem saber como acho isso perfeitamente poético.
(No meu caderninho de ideias, anotei que O nome das nuvens é um ótimo título para um livro.)
Acho que toda pessoa que escreve tem o seu caderninho de ideias. Ou o arquivo digital do Word reservado para isso. É quase um anexo, um móvel que a gente arrasta quando se muda por aí. A leitura desses registros pode ser impossível para as outras pessoas (quem entende a cabeça alheia que ainda não aprendeu a se explicar direito?). Eu tenho até vergonha do meu caderninho porque as frases saem picadas e até um pouco tortas. As pessoas não costumam ter uma ideia assim bonitinha, de cabelo arrumado e banho tomado. Pelo contrário. No meu caso, pelo menos, elas chegam tortas, atravessadas, e lá vou eu ter o trabalho de tentar organizar tudo, e sobretudo separar o que vou usar daquilo que só acho bonito.
Quando eu era adolescente tinha essa cisma que precisava escrever um livro revolucionário com uma ideia muito original. Foi daí que criei o vício de ler sinopses, de rastrear as ideias alheias para ver o que elas tinham de novo. Precisei amadurecer para entender a besteira que é tentar perseguir a novidade se a única coisa nova que existe na arte é a capacidade de olhar. Acho, francamente, que todas as ideias do mundo já foram escritas. A gente, por outro lado, está vivendo pela primeira vez. Viver importa muito.
Até as pessoas que não escrevem, passam longe da arte e mesmo aquelas que alegam não ter imaginação têm ideias. Todas essas pessoas poderiam escrever um livro. Escrever um livro não é algo que te faz soberano e detentor de poderes, está mais para o contrário. A diferença entre uma ideia e uma ideia que vira alguma coisa é só a disciplina. A falta de disciplina, meus amigos, mata qualquer possibilidade.
E isso não é algo ruim, veja bem. Aqui na minha casa mato ideias o tempo todo. A grande graça de morar nesse país de abstrações é que estou longe das coisas físicas, mensuráveis e concretas que o meu marido tanto ama, portanto o que morreu hoje pode perfeitamente ressuscitar amanhã. É muito gostoso entender e acolher a perenidade, sem perder de vista quais são as ideias que valem a pena insistir.
Outra coisa que percebi também é que mudei meu jeito de ter ideias. Se antes elas vinham um pouco mais “claras” – e se eu escrevesse a vida de uma barriga de aluguel – agora costumo ter ideias a partir de sentimentos. E se eu escrevesse sobre a culpa. E se eu escrevesse sobre essa sensação esquisita que nem eu mesma consegui descobrir ainda o que é?
Também tenho ideias relâmpagos que surgem a partir de imagens bem específicas, que com frequência viram contos ou outras coisas mais “rápidas”. Quem já leu minhas coisas sabe que sou uma escritora bem imagética (e o pessoal do cinema ama isso, motivo que me faz refletir se eu não deveria começar a escrever roteiros). É comum pensar em uma cena, um quadro fixo, e escrever uma história a partir disso, como uma criança preenchendo um desenho pronto com cor.
Agora estou tentando me desafiar a ter ideias de outro jeito. Estou tentando me relacionar mais profundamente com a palavra escrita, a ponto de começar a escrever sem ter qualquer ideia de onde vou cair, de testar as frases só para provar o significado. Tem sido interessante esse exercício, espero que me faça crescer como escritora.
No fim das contas, independentemente de como surjam as ideias, acho que o importante é não desistir de pensar. Pensar é muito extraordinário.
DISCLAIMER
João, meu marido, diz que as histórias que conto nunca são verdadeiras, e que invento ou aumento quase todos os meus relatos para fins de aperfeiçoamento ficcional. Ele, portanto, observaria que nenhum dos episódios aqui mencionados aconteceram exatamente como a forma narrada. A exatidão é muito importante para o rapaz, e como ele (às vezes) lê esta newsletter, achei por bem mencionar.
Leituras críticas
Voltei a abrir a agenda para leituras críticas. Então, se você tem um romance ou um livro de contos e quer uma visão profissional sobre ele, me manda um e-mail: fabiane.c.guimaraes@gmail.com. Se você é uma escritora mulher e tem um projeto em andamento, me manda também que faço um precinho legal (poucas mulheres me escrevem, fico triste).
A oficina de escrita
Já temos uma data definida para nossa oficina de escrita!!!!!! Por votação popular, será no sábado, 27 de janeiro, às 10h. Em breve mandarei as coordenadas por e-mail para os apoiadores da newsletter, que terão ingresso garantido. Caso você queira participar, mas ainda não apoia a news, pode assinar aqui, por apenas 9,99 ao mês! E nada de cancelar depois da oficina, hein? Deus tá vendo.
Caso você queira assinar, mas tem problemas com cartão de crédito, me manda um alô por e-mail que a gente dá um jeito.
Já perdi muitas ideias por não ter onde anotar no momento, porque minhas ideias vão embora tão rápido quanto chegam.. o mais legal é quando elas chegam no banho!!!
Ansiosa para aula dia 27!!
eu gosto de ficcionalizar um pouco também a vida. até porque, o real mesmo não existe, tudo passa pelo filtro de um ponto de vista.