
Não, não vou falar sobre a lista. Já me pronunciei a respeito no notes e acho que nem é caso de dar mais atenção a respeito. Listas sempre trazem contradições, sempre mexem nos brios e açoitam os ânimos. As listas têm o poder de exaltar a ausência. Pelo menos, dessa vez, a discussão é sobre livros. Nos últimos dias tenho alcançado o pico do meu cansaço materno, que é um cansaço quase autodestrutivo e ao mesmo tempo operante, e evito me manifestar sobre qualquer assunto. Mas alguma coisa naquela matéria fez azedar dentro de mim uma tristeza que é muito própria porque diz respeito ao meu lugar no mundo. Um corpo de cem jurados de várias partes do país, quando convocados a opinar sobre os melhores livros da literatura brasileira dos últimos 25 anos, não encontraram nos acervos de suas memórias livros que abordem as paisagens do centro, ou livros marcados pela autoria da gente cabocla e sertaneja que também é brasileira. A minha gente. Os caipiras. A minha grande decepção não é pela excludência natural e vivida desde sempre. O meu coração fica partido é por saber que, mesmo com os progressos, não parece haver lugar na mesa para o reconhecimento da minha cultura.
Talvez eu esteja especialmente sensível a respeito deste assunto porque, como adiantei na última newsletter, estou editando meu livro novo, mais uma história que vem carregada do meu sotaque goiano brasiliense, é inevitável querer que seja boa e ter para ela muitos planos. Longe de esperar figurar em listas desse tipo – não tenho nem quilate – o que eu queria era poder mostrar a linguagem da minha terra. É meu terceiro romance, a previsão é sair em março de ano que vem pela Alfaguara, como os outros dois saíram. Não escondo de ninguém o orgulho que sinto em publicar pela Companhia das Letras. Sim, é uma empresa, detém e controla o poder econômico que centraliza as conversas, sendo em parte difusora das injustiças, pela sua natureza gigantesca. Mas essa empresa em questão era um sonho que eu alimentava desde menina, é uma empresa feita de múltiplos profissionais, editores que tratam nós – os autores – com um respeito tão grande que parece mentira. Se alguém tiver curiosidade em saber como é publicar um livro pela Companhia, não hesito em dizer: é mesmo um sonho. Um sonho porque nosso texto é lido, editado e apreciado, revisado e carinhosamente embalado na forma concreta do objeto livro. Antes dali, nunca tinham lido e tratado algo meu com tanto cuidado. Mas, principalmente para mim, é de grande realização porque permite que meus romances saiam em edições primorosas e estejam disponíveis em prateleiras do país inteiro, um baita privilégio.
Mas não deixa de ser engraçado, às vezes, ser autora de uma região com tão baixa representatividade nesse cenário massivamente dominado pelo Sudeste, inclusive pelo ponto focal da própria editora. Em especial, porque moro em Brasília e não saí daqui, não tenho a menor pretensão de sair. Algumas vezes me aconteceu de receber convites para eventos e depois ser delicadamente “desconvidada” após perceberem que não, eu não moro em São Paulo. Isso quando cogitam o meu nome, é claro. Se quero aparecer e estar nos lugares, preciso custear tudo do meu próprio bolso, e às vezes simplesmente não tenho saúde física ou financeira para isso. Sim, eu sei que poderia ter muito mais oportunidades para minha carreira literária se morasse na capital paulista. Mas essa é a coisa: eu não quero.
Desde que vim morar em Brasília e comecei a estudar na UnB me deram a letra: artista, se quiser vingar e ter representatividade nacional, precisa ir para São Paulo ou Rio. Vários colegas fizeram esse caminho e hoje vejo com muito orgulho o quanto de fato cresceram. Brasília é um ovo, é uma cidade do interior, nada que não for político ou institucional tem muito espaço por aqui. Não é diferente de muitas outras cidades. O Sudeste concentra as oportunidades para os artistas porque, bem, é o centro econômico e cultural do país. Eu dei as costas para todas as possibilidades quando escolhi permanecer. Não posso reclamar das consequências, porque não chega a virar frustração. A minha vida, a qualidade que espero para ela, é mais importante. Sou uma pessoa pacata, vivo na casa própria que construí como eu queria – um espaço grande com quintal – moro em uma cidade verde, profundamente linda, seria incapaz de abandonar o céu e os bichos daqui. Longe do Cerrado eu murcho, me inquieto, viro uma estátua e corro o risco de me esfarelar. Quando preciso, quando me chamam, é só pegar um avião.
Não deixa de ser estranho, escrever a partir desse lugar distante, às vezes parece que estou falando de outro país. Tenho várias anedotas engraçadas a relatar. Quando fui publicar o Apague a luz, todo mundo da Companhia que revisou o texto perguntou é isso mesmo quando eu disse que o personagem subia as 700. Mais estranho ainda para a pobre tradutora que precisou verter o livro para o polonês , não deve ter sido fácil traduzir a lógica matemática do Lúcio Costa. Sem falar nas inúmeras expressões, tão comuns aqui, e que eu bato o pé para manter. Só não consegui manter as siglas da cidade, infelizmente. No Como se fosse um monstro tive que dar o braço a torcer e colocar Hospital Regional da Asa Norte em vez de HRAN (acreditem, HRAN é uma palavra que o brasiliense sabe ler).
É meio bizarro que o Brasil não conheça a parte de dentro do Brasil. Nem vou mencionar as questões que tenho com o termo “Brasil profundo”: não somos as entranhas de ninguém, estamos aqui desde sempre. A falta de representatividade pode fazer alguém duvidar da sua capacidade. Muitas vezes me podei por achar que não era possível realizar literatura com tanto pó. Existe uma vilania atribuída ao centro do país, talvez pela sombra do agronegócio ou o fenômeno do sertanejo. Entre as pessoas “de cultura” paira a soberba, amam cuspir em cima da gente, é um preconceito que ninguém questiona, porque todo mundo concorda. Sim, são uns matutos. Sim, essa música é horrorosa. Parte da minha dificuldade em me reconhecer artista foi, por muito tempo, a vergonha das minhas origens. A vergonha de falar errado e suprimir os plurais, de vir de uma família de avós analfabetos, precisei crescer e virar gente para reconhecer a poesia que havia naquelas modas de viola que meu pai escutava. Não importa o que a soberba sudestina dite como literatura, como cultura. Chico Mineiro é a poesia me faz chorar. O céu daqui não é visto em nenhuma outra parte do país. Há beleza e espaço para ficção nesses campos de cultivo que explodem de soja, mas também de luz. Eu não escrevo para o paulista me ler. Eu escrevo para a minha gente saber que a gente também pode escrever.
Dito isso, só queria pedir: deem uma chance aos autores contemporâneos do centro do país. Não precisam me ler, não precisam gostar de mim ou do meu trabalho. Leiam Paulliny Tort. Leiam Mariana Lozzi. Leiam Maíra Valério, Alexandre Arbex, André Cunha, Maria José Silveira e Vinícius Portella. E aqui no Substack também tem muitos de nós, como a
, o e a . Se você é um editor, preste atenção na gente daqui. Temos muita gente ainda não publicada. Se quiserem dicas, falem comigo.
Eu nasci aguardando a publicação desse texto. Te admiro demais, Fabi. Bicha foda potente da mulesta. Tamo junta, meu amor. Cada uma com sua poeira, cada uma com seu sotaque. Mas ó, tô aqui pra você.
o brasil é potente demais para ser reduzido a rio e são paulo...