Há um vídeo no meu celular, não sei quantas vezes já o assisti. Nele estou sentada no chão, abraçada por trás pelo meu marido, e um bebê enorme e arroxeado brota de mim aos poucos. O áudio é aterrorizante, não me reconheço naqueles gritos, por isso vejo no mudo. Meu momento preferido é quando as mãos atenciosas e experientes da médica recebem o corpo da minha filha, desenrolando gentilmente o cordão e entregando o pacote ensaboado para mim. A imagem de baixa qualidade, coagulada por uma luz azulada e amanhecida – meu tipo favorito de luz –, mostra o instante exato em que a agonia desaparece do meu rosto. Ergo as sobrancelhas de puro alívio. Não há mais dor. Volto a essa parte só para rever o momento em que eu e João contemplamos a bebê, sorrindo com o mais puro espanto, tanto espanto que não conseguimos sequer chorar. Dá para ver o resto do mundo desaparecendo diante da gente. O quarto do hospital, a diligência da médica em clampear o cordão, o pano branco sendo esfregado nas costas da minha filha, o deslizamento da placenta enegrecida e murcha, esse órgão de um papel cumprido. Nada mais importa. Olhamos apenas para ela. O absurdo que é ela.
Com a minha primeira filha, Isabel, fui uma mãe muito romântica. Escrevi várias cartas. Tenho um livro que começou a ser escrito antes mesmo que ela fosse concebida. Registrei cada detalhe, descrevi seus pequenos passos, recortei as imagens do ultrassom, esperei. Nessa gestação, não consegui escrever nem registrar nada. Muitas vezes me culpei por isso – Cora, você merecia muito mais de mim. Não foi uma gestação fácil. Uma gravidez que me pegou de surpresa, com outra criança tão pequena para cuidar, justo comigo que sou tão controladora, que busco controlar até a medida dos meus sonhos. Foi no chuveiro, durante as primeiras contrações, que descobri que nada disso era necessário. A Cora já veio existindo com muita facilidade. Parece que ela surgiu para me ensinar uma grande lição: a de que o amor não precisa ser anunciado. Nunca precisou.
O meu segundo parto foi também um grande testemunho sobre a natureza do tempo. Na primeira vez foi tudo mais ou menos programado – quis muito o parto normal, tentei a indução, cheguei a dilatar os dez centímetros, mas a Isabel nasceu após uma cesariana por conta de um mal posicionamento. Dessa vez, o processo seguiu seu curso. Lento, direto, natural. Comecei a sentir os pródromos – como são chamadas as primeiras contrações, espécie de prelúdio do parto – ainda na segunda-feira. Na quarta, a dor começou a pegar ritmo, mas ainda não era forte e nem frequente o bastante para justificar a ida ao hospital. Com o aplicativo que contava contrações na mão, era acompanhada de longe pela minha doula. A expectativa era tão grande que eu torcia pela dor. Esperava por ela debaixo do chuveiro, o lugar mais favorável da casa. Enquanto a água caía, ia sentindo a minha filha se aprontar. O tempo todo saudável e firme dentro de mim, veio descendo com a calma de um animal muito mais sábio, ali percebi que até o seu jeito de chegar seria diferente, na sua própria cadência. A mim só cabia mesmo deixar que chegasse, sem tentar controlar o ritmo, nem prever o caminho. O grande desafio da minha vida sempre foi abrir mão do controle. Acho que inventei de ser mãe para aprender como se faz.
Demos entrada no hospital na quinta-feira à noite. Por motivos financeiros, decidi que tentaria o parto normal com a equipe que estivesse de plantão na maternidade escolhida – para quem não sabe, o plano de saúde não reembolsa a assistência de um obstetra particular nesses casos. Ali encarei de frente a realidade do sistema médico brasileiro, que prioriza a intervenção cirúrgica. A médica do plantão me recebeu sonolenta e pouco disposta. Logo colocou em dúvida a possibilidade de que meu parto natural fosse realizado, já que eu havia passado por uma cesárea, ali mesmo, há menos de 18 meses. Estávamos a uma semana de completar 18 meses da cirurgia e a minha obstetra já havia conversado comigo sobre os riscos, que eram mínimos. Entendi que os plantonistas não fariam a menor questão de me ajudar a parir. Eu estava com cinco centímetros de dilatação, contudo, e fui internada imediatamente.
Na sala de parto, tentei relaxar. Ouvi a playlist selecionada para o momento, fiz exercícios para ajudar a dilatar o colo. Por sorte, contei com o apoio da doula e de um enfermeiro obstétrico, um ser luminoso e providencial, que pediu gentilmente para me avaliar. Enquanto só recebi uma visita médica durante toda a madrugada em que passei ali, o enfermeiro ficou conosco durante um bom tempo, sugerindo posições e exercícios para estimular as contrações, que ainda não tinham pegado o embalo necessário. A uma determinada altura, ele e a doula sussurravam sobre meus ombros, discutindo técnicas e uso de óleos essenciais. A sálvia pode ajudar, ela dizia. Não, acho melhor a canela e o cravo, ele rebatia. Vocês dois parecem curandeiros do século 18, brinquei. E era exatamente isso. Quem me conduziu ao parto foram dois jovens feiticeiros, estudiosos da natureza e das práticas esquecidas. Os únicos que, durante aquela longa madrugada, me lembraram que o meu corpo de mulher saberia o que fazer. A eles devo um belo pedaço da minha existência.
Quando amanheceu, eu já alcançava oito centímetros de dilatação e nenhum outro médico havia aparecido para me avaliar. Foi quando decidimos chamar minha obstetra, que veio correndo, ralhando comigo por não ter ligado mais cedo. Me paga como você puder, o anjo disse, estourando a bolsa com prontidão. Duas horas e meia depois, Cora despontava entre minhas pernas com sua cabeça de cabelinhos ralos, causando uma dor descomunal. Quando escolhi essa via de parto, sabia que haveria a possibilidade de pedir analgesia e nunca tive qualquer reserva quanto a isso. Àquela altura, no entanto, a anestesia poderia atrasar o processo. Pensei nessa menina que veio tão natural e no tempo dela, então decidi aguentar. Desesperada, não conseguia achar um jeito que fosse mais confortável para o expulsivo, então me joguei no chão. A equipe inteira se arrumou ao meu redor, o João deu um jeito de se instalar atrás de mim, encolhendo suas longas pernas. Uma enfermeira, preocupada, perguntou se eu não queria usar a banqueta, a maca, a bola, todos os aparatos daquela sala tão bem equipada. Deixa ela, a minha médica sussurrou. Ela escolheu assim.
O meu parto foi perfeito porque pude escolher. Pari no chão, só com a energia do meu corpo, com uma assistência ideal, que não me forçou intervenções, que deixou a Cora chegar como queria, escapando sem deixar lacerações. Fico pensando quantas mulheres não têm essa opção tão simples, tão humana, de escolher como dar à luz.
Agora escrevo esse texto, apesar de dizer que não escreveria, porque é a minha ferramenta de sobrevivência. No carrinho, o mesmo da irmã, a dita cuja dorme. É uma bebê rechonchuda e rosada, não deixo de me surpreender com sua beleza, ainda nem acredito direito em como é perfeita. Apesar disso, o puerpério bate forte. Não consigo me livrar dessa sensação difusa e agridoce, desse borrão na superfície da minha rotina, em que continuo sendo eu, ao mesmo tempo em que nunca mais serei. Há algumas semanas escrevi que dar à luz era como se descolar do tempo, e é exatamente essa a sensação. Os dias são longos, as madrugadas mais longas ainda. Sinto grande felicidade, mas é uma felicidade desbotada, cheia de buracos por onde passam vários fiozinhos de tristeza, estou com um leve baby blues. Leio muito, mas não consigo me concentrar em nada, e quando amamento a boca se enche daquela secura esquisita e desesperada, uma sede que a água não consegue matar por inteiro. Meu corpo, todo solto e frouxo, vai se curando sozinho. Às vezes, quando a casa está silenciosa, consigo ouvir os meus órgãos deslizando de volta para o lugar. O vazio que se criou aqui dentro é um lembrete da força que eu nem sabia que tinha. Sinto orgulho de mim.
Depois dessa estreia arrasadora na vida, quero só ver quanta coisa a Cora ainda vai me ensinar.
Agradeço imensamente a esta equipe:
Obstetra – Tatiana Cordeiro (@dra.tati.cordeiro)
Doula — Stefannie Soares (@doulastefannie)
Enfermeiro obstétrico – Cristiano (@enf.obst.cristiano)
Que relato forte e belo, Fabi.
Isso aqui entrou na carne: “Meu corpo, todo solto e frouxo, vai se curando sozinho. Às vezes, quando a casa está silenciosa, consigo ouvir os meus órgãos deslizando de volta para o lugar.” UAU!
Que lindo, que emocionante! Seu relato de parto vai entrar na minha pastinha pessoal de evidências de que tudo de ter filho (engravidar, parir, cuidar) é uma extensa (e pesada) coleção de momentos reveladores, espelhos pra se ver e convites pra expandir