Meus quadris armados para a gravidade não mentem. Em menos de um mês darei à luz, o que significa que estou prestes a me descolar do tempo. Minha filha mais velha tem apenas um ano e cinco meses, e ainda acorda várias vezes durante a noite. Desde o começo da gravidez venho tentando ajustar a rotina para que ela durma. Tento cortar as mamadeiras porque me disseram que é um vício, uma associação, e ela não tem fome de verdade. Tento melhorar a temperatura do quarto, a iluminação, a leveza do pijama, faço massagens, uso óleo essencial de lavanda. Fracasso todas as vezes. Fico pensando em como as pessoas sabem tanto sobre o que querem os bebês. Eu nunca consigo ter essa ciência. Isabel segue seu próprio ritmo no mundo. A irmã vai chegar, ela ainda não sabe dormir. Como você vai fazer, as pessoas me perguntam. Eu não sei.
Pensando bem, no entanto, eu nunca soube fazer as coisas. Uma das minhas lembranças mais traumáticas envolve o primeiro dia na pré-escola. Fui para o colégio meio tarde para os padrões, apenas aos sete anos. Em uma sala repleta de crianças acostumadas a viver em grupo, ganhei a tarefa de pintar um elefante de roxo. Mas eu não tinha um lápis de cor roxo, porque a caixinha de doze cores era mais cara que a de seis, e nesse mundo tudo que é primário e abundante parece valer menos. Fiquei ali, olhando para o elefante em branco. Não podia ser de outra cor, eu me pergunto hoje. Quando passou a professora, expliquei meu dilema. Menina boba, ela resmungou (não era uma professora meiga). Se você não tem roxo, é só misturar o vermelho e o azul. Pegou a minha mão e juntou os dois. Assim.
A minha primeira professora me ensinou muito sobre a determinação necessária para aprender, ainda que para isso tenha me aterrorizado. Vivia irritada, ameaçava a palmatória como castigo e nos colocava para ajoelhar no milho em casos mais graves de desobediência. Tia Elza também era do tipo que confeccionava constrangedores chapéus de orelha de burro: todas as crianças que erravam a lição ganhavam um. Essa mulher — a que me alfabetizou — me alfabetizou pelas vias do medo, e hoje eu leio para aprender a escrever, e acho que escrever é o que me dá mais coragem.
São dias muito longos e tenho ficado cada vez mais cansada. A minha psicóloga disse que preciso fazer algo por mim, então tomo banho. Banhos longuíssimos e perfumados, porque é o único cuidado possível. É desconfortável tomar banho em pé por conta do peso da barriga, então uso um banquinho de plástico. O banheiro da nossa casa tem uma claraboia e de lá dá para ver o céu. Outro dia, o sol caiu em mim bem no momento em que eu usava a água quente para aliviar a lombar. Olhei o reflexo no vidro, eu brilhava como uma espécie de deusa e me achei linda pela primeira vez em muito tempo. Chorei, ultimamente choro por tudo. Não deixa de ser um processo bonito, a gente entende muito mais de poesia.
Tenho muitas dúvidas sobre como serão os próximos meses, e fico triste porque não sei quantos pratos vou ter que derrubar. Quando você é mulher e escolhe ser mãe, essa é uma escolha que precisa ser feita de novo todos os dias. Quando você é mulher e mãe, todos os seus projetos profissionais ficam um pouco mais difíceis. E eu tenho muitos projetos em andamento. O romance novo, essa coisa frágil que eu insisto em dizer que é uma “carreira literária”, todos os meus sonhos relacionados à escrita, que é a aposta mais arriscada que eu fiz (se isso não der certo eu não tenho plano B). Eu quis tanto ser escritora, eu quis tanto ser mãe. Não sabia que era tão complicado ser as duas coisas.
Esses dias, conversando com meu marido, chegamos à conclusão que ter filhos é uma experiência que se paga pela qualidade quase translúcida do amor. Dá muito trabalho, tem partes ruins, mas é que a parte boa é muito boa – disse o João, um engenheiro bem menos eloquente do que eu, e que ainda assim definiu melhor. Ter filhos não é algo que eu possa recomendar, assim como um livro ou um prato de restaurante, porque acredito que é uma escolha de gravíssima importância. São muitos os sacrifícios e as reverências necessárias para formar uma vida. Mas é inegável que uma vida que recebe outra vida faz crescer o propósito de existir.
Sempre que saímos na rua, a nossa família em expansão, sinto olhares de pena e solidariedade. Às vezes, até me divirto. Sim, estou esperando minha segunda filha enquanto a primeira ainda é um bebê, não planejei que isso acontecesse e esse processo não tem sido confortável. As dúvidas e o medo são enormes. Me sinto um surfista olhando a onda que se avizinha, sabendo que é uma onda gigantesca, monstruosa, e que possivelmente vai me engolir antes que eu tenha tempo de subir na prancha. A única coisa sobre a qual tenho certeza é que serei o suficiente. Eu não sabia ser mãe, a Isabel me ensinou. Pelo menos posso dar esse presente à Cora: o de saber mais. O que ainda é muito pouco, claro. Minha vida, no momento, é esse enorme lápis de cor roxo. Mas eu vou dar um jeito.
Antes de ir embora...
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Já tinha chorado um tanto hoje, sabe? Pousei de volta na escolha de vida que há dez anos venho sustentando - a de morar do outro lado do oceano e não poder ir ali tomar um café da tarde na casa da irmã ou passar o fim de semana na casa da mãe. Já era difícil sem filho, agora é difícil de um tanto que eu nem imaginava que poderia ser..
Não sabia que ainda tinha choro precisando sair fazendo enxurrada até o peito desapertar. Alguns pratos irão cair por aqui.. e te ler, de alguma forma, faz essa falta de equilíbrio ser menos dolorida.
Com você no pensamento e no coração, desejando que esse baile de parir que você e Cora irão, em breve, dançar seja abençoado.
Um abraço!!
Fabiane, primeiro, quero te dar um abraço. Em segundo lugar, preciso te dizer que não sou mãe, esse sonho não se concretizou para mim. Mas sou uma mulher, perseguindo uma carreira literária também, com sonhos em stand-by para cuidar de três idosos, dois em condições mais vulneráveis. Há três anos minha vida mudou radicalmente. Passei dois deles repetindo essa frase: eu não sei como vou fazer ou como eu vou dar conta. Continuo sem essas respostas, mas sei que vou. Às vezes, por uma resiliência e coragem que eu mesma não reconheço; às vezes, na humildade, pedindo e ajudando ajuda. Ainda me pergunto às vezes: e eu? E é nessas horas que eu me recordo de algo muito escasso na nossa sociedade e que aprendi também nessa sociedade: acolhimento. Acolher quem sou, onde estou agora e quem está ao meu redor da melhor forma possível em casa momento. Que o seu medo nunca seja maior que a poesia da vida e as lindas, ainda que difíceis, lições que ela nos traz. Boa hora! Boa vida!