Em 2016, quando Bob Dylan ganhou o Nobel de literatura, fiquei revoltada. Na época, eu trabalhava na redação de um jornal e o meu então chefe, Lourenço, ficou me espezinhando por isso. Ele acreditava que o prêmio era justíssimo, e como a criatura adoradora de debates que é, não hesitou em perguntar as razões da minha contrariedade. Eu tinha muitas. Não discordo da poesia que existe na música de Bob Dylan, mas um Nobel de literatura – defendi – deveria ir para quem faz literatura. Não se trata, por exemplo, de um Nobel de arte. Música não pode ser literatura? Ele zombava. Não! Eu retrucava. Mas quem se importa com o Nobel, isso é irrelevante, resmunguei, logo em seguida. Foi então que ele disparou algo mais ou menos assim: Fabi, espero que a sua carreira literária decole, que você escreva muitos livros, e um dia seja cotada para o Nobel. Quero ver se sua opinião será a mesma.
Aos vinte anos, eu tinha opiniões mais contundentes. Uma coisa que a maturidade traz, além do cansaço, é esse desapego em discutir. Claro, hoje reconheço, o prêmio Nobel é o mais importante da literatura, porque coloca autores no holofote do mundo. É de um prestígio magnífico, mesmo com todas as problemáticas envolvidas (um prêmio europeu será sempre autocentrado, por mais inclusivo que se esforce para ser). Na semana passada, o laureado foi o norueguês Jon Fosse, mais um autor do qual nunca tinha ouvido falar. Como habitualmente faço, corri para conferir os detalhes da carreira do rapaz de 64 anos, e arrematar para mim uma tradução. Para quem é apaixonado por livros, é irresistível que seja assim, como um convite coletivo a analisar a escolha, todos nos sentimos um pouquinho jurados da glória milionária.
Um prêmio, contudo, principalmente um prêmio com essa envergadura, sempre vai trazer consigo sua carga de polêmicas. Ao eleger o que é extraordinário, ergue-se um muro sobre aquilo que não é. Há uma sensação constante de injustiça e incompletude. Se ganha uma mulher ou uma pessoa negra, os críticos do identitarismo correm para desfiar suas lamúrias carregadas de preconceito. Se ganha um homem branco, como é o caso desse ano, quem está cansado deles torce o nariz. Em se tratando de arte, nunca teremos mesmo a unanimidade.
Mas, vá lá, eu amo a literatura, e amo conhecer o trabalho de um autor completamente novo. Às vezes, pode até ser que eu concorde com o comitê sueco e me apaixone pelo laureado. Aconteceu com Alice Munro em 2013, quando a canadense foi então vastamente publicada em português – e veio a se tornar uma das minhas autoras favoritas da vida. Com o Jon Fosse, suspeito, não acontecerá o mesmo. Estou lendo É a Ales, que acabou de ser publicado aqui no Brasil, e ainda não fui fisgada. Para dizer a verdade, fiquei com um pouco de preguiça ao descobrir que o autor não é fã de parágrafos (todos os seus livros, ao que parece, são escritos em um intenso fluxo de consciência que abre mão deles).
Há uma importante lição do Nobel para quem escreve, no entanto. Algo que a Fabi de 2016 nem desconfiava, embora já sonhasse em ser escritora-reconhecida-publicada. E nem é sobre a qualidade ou o estilo daquilo que é julgado como altíssima literatura, um tópico que mereceria uma edição da news por si só. É que, ao contrário de vários outros prêmios por aí, o Nobel não elege o livro do ano. Não contempla um romance específico. Essa é uma honraria dedicada ao conjunto da obra de um autor. É sobre um projeto de vida. E isso está ligado ao conselho literário mais importante que eu já recebi.
Qual é o seu projeto?
Jon Fosse, cotadíssimo desde cedo para receber o prêmio desse ano, arrematou quase todos os galardões literários de seu país. Publicado na Inglaterra e nos EUA, despertou a paixão dos leitores anglófonos. Seu estilo, que ele mesmo chama de slow prose, prescinde dos parágrafos e usa a técnica da repetição para criar um ritmo próprio, e muitos o comparam a Samuel Beckett por isso. Ele começou no teatro e passou muitos anos escrevendo peças. Os temas de sua escrita passam pela vida, morte, experiências com o divino e questões metafísicas. Nessa entrevista aqui, ele conta que sofreu um acidente aos sete anos de idade e quase morreu, quando teve então uma experiência mística inexplicável. Esse acontecimento é a base de toda sua escrita e um dos motivos de sua conversão ao catolicismo. Goste ou não do trabalho dele, é bem óbvio que o homem tem um projeto literário, e se dedicou a vida inteira a expressá-lo.
Um projeto literário é a raiz, o que se explica e transborda na autoria. São o conjunto de obsessões, temas e escolhas estéticas que formam uma voz. Se você pega qualquer autor estabelecido, verá que é muito fácil reconhecer qualquer um de seus livros. A Nobel do ano passado Annie Ernaux, por exemplo, transformou sua vida em autoficção em livros curtos e pungentes. Jorge Amado, que na minha opinião deveria ter levado um Nobel, pintou a humanidade e suas contradições a partir da Bahia. O escritor se constrói a partir de quem é. Depois de lançado ao mundo, é impossível não distinguir sua marca, porque aquilo que escrevemos é também um registro daquilo que somos.
O difícil é se enxergar quando ainda estamos no início. Queremos escrever, gostamos da ideia de escrever, mas ainda não nos formamos o suficiente para entender o que faremos. Muita gente começa imitando, claro, como as crianças imitam os adultos, e é das referências que partem os primeiros passos. Depois, convém se libertar e produzir da inspiração algo novo, privado, uma varandinha com vista para o lado de dentro. Em qual condomínio artístico vocês se constroem?
Quando alguém me faz aquela fatídica pergunta – como publicar um livro – eu sempre destaco que não se trata do livro, mas da obra. De sua perspectiva autoral. Quem apresenta um projeto, quem sabe o que faz, larga na frente nessa corrida editorial tão injusta. Vou largar aqui a real: nenhum editor quer publicar autores que só escreveram um livro, isso é um fato. Quando apostam em alguém, a maior parte das casas editoriais espera que essa pessoa siga escrevendo, não importa a frequência. É o capitalismo, o mercado ama os lançamentos, e leva tempo para se consolidar. Mas é também a natureza do nosso trabalho. Qual o sentido de escrever, se não for para continuar escrevendo? O próximo livro, achamos, parece sempre o melhor, e o que importa é que a gente tenha personalidade de fazer o que é nosso.
Eu queria ter entendido isso mais cedo. Por muito tempo tentei me adequar e escrever aquilo que eu achava que o mercado ou a academia queria, tentei escrever para aumentar minhas chances de publicar, até perceber que eu precisava escrever a mim mesma, e o resto seria só consequência.
Todo mundo tem sua voz. Quem escreve, escreve por algum motivo. Quando você solta o refém da criatividade e vai experimentando se expressar, as marcas vão aparecendo. Alguns têm a escrita mais lírica, querem descrever as coisas internas, estão interessados na matéria-prima dos fracassos. Outros gostam da ação, do cotidiano, do gingado coloquial que se manifesta nos diálogos. Há quem explore o terreno fértil do gênero e do fantástico, e quem arme acampamento definitivo no realismo. Essa escolha quase sempre não é consciente. E, para ser escritor profissional, é muito importante se identificar e se abraçar dentro delas. Depois disso, tudo flui melhor.
Estou bem longe de ganhar um Nobel, talvez nunca ganhe sequer um pequeno Jabuti, mas hoje tenho a certeza de que sei qual é meu projeto literário. Isso parte por identificar também aquilo que não sou. Não sou Jon Fosse, minha escrita não tem nada de experimental, para começar uso muitos parágrafos. Mas também escrevo sobre vida e morte, e tenho um interesse muito particular em questões familiares e pessoas de caráter duvidoso. Gosto de umas polêmicas melancólicas, todas as minhas histórias são um pouquinho tristes, minha narrativa é simples e direta, e sou também uma escritora de trama, viciada em surpresas. Acima de tudo isso, escrevo a partir do Cerrado. Todas as minhas histórias, por mais diferentes que sejam, vão vir meio empoeiradas e cheias de secura, com a cadência caipira e a solidão de quem nasceu longe do mar. Não se trata de se aprisionar, de se definir à força, ou mesmo de repetir uma fórmula. É que eu escrevo há tempo suficiente para me conhecer.
E vocês, sabem qual é o projeto de vocês? Se ganhassem um Nobel, como o comitê descreveria sua obra?
Pausa para o merchan
Meu romance Como se fosse um monstro ganhou uma bela resenha na Quatro Cinco Um desse mês, e eu fiquei bem felizinha com isso. O livro está com um descontão na Amazon, então deixo aqui o link para quem se interessar.
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hmmm se eu ganhasse um Nobel, seria por misturar fluxo de consciencia com auto-ficcao com lirismo sadico hahaha nao sei inventando aqui meu proprio estilo, mas bem que poderiam ganhar menos homenes brancos..... zzzZZZzzz preguiça
Apaziguou muitas angústias de uma jovem escritora que ainda está descobrindo seu projeto (e sua varandinha pra vista de dentro)!