
Foi por meio de uma amiga que fiquei sabendo sobre uma condição que impede as pessoas de imaginar. Como o nome e seu anticlimático prefixo já anunciam, a Afantasia é a inabilidade de criar imagens na cabeça. Na época essa amiga conheceu um rapaz que padece dessa condição e, naturalmente, ficou obcecada. Fez um milhão de perguntas, que ele respondeu pacientemente: não, não conseguia enxergar com os olhos de dentro, nem mesmo se estivesse lendo. Não lembrava o rosto de nenhuma pessoa que saísse de suas vistas, porque só reconhecia o que estava ao alcance. Se ouvia a palavra montanha, pensava apenas no significado objetivo e sólido de uma montanha, sem construir um itinerário mental de referência, sem desenhar no ar uma corcova revestida de árvores e pedras escuras, ou picos nevados com burrinhos carregadores de turistas. Eu não sobreviveria a tanto vazio, mas ele estava acostumado porque esse era seu ecossistema mental. Dentro dele não havia o caldo da imaginação.
Ando relembrando dessa história porque padeço do problema oposto. A minha imaginação é excessiva, gordurosa, escorre em horários inequívocos, às vezes me faz doer a cabeça. Tenho uma propensão tão grande a imaginar coisas que a dificuldade é arrancar dali os fatos. Às vezes não sei se estou lembrando de algo que realmente aconteceu ou se inventei a própria memória. Não vou nem entrar nos detalhes de como toda essa imaginação acaba evoluindo para ansiedade, cada qual com os seus transtornos – eu gosto de olhar para o lado positivo. Faz muito bem a uma escritora ter imaginação. Por mais que as tendências de publicação apontem para o contrário.
O problema é que tenho mais ideias do que consigo bancar. Mais ideias do que poderia desenvolver em vida. Ideias ruins, raquíticas, outras enormes e grandiloquentes. Algumas me chegam objetivas e firmes como blocos de concreto, outras são fantasmagóricas, quase fiapos, que eu agarro e tento processar por meio de resumos breves – anoto tudo no celular, que fique claro, porque a coisa mais fácil de se perder é uma ideia. A bicha é escorregadia feito peixe, se você deixa de lado corre o risco de jogá-la de volta para o éter. Existe todo um oceano de ideias perdidas. Todos os escritores que conheço têm um arquivo ou um caderninho para guardar as suas.
Adoro quando me perguntam das coisas que ainda quero escrever, porque a lista é enorme. Jamais conseguirei escrever tudo, então sou obrigada a escolher. Antes, essa escolha me perturbava. Queria ter a sabedoria de selecionar a ideia mais original e bonita, porque ainda acreditava que seria possível me destacar pelas sementes, depois fui entender que não é sobre a história inicial, e sim sobre a forma de contar. Tudo já foi feito. O desafio é fazer de novo.
A Toni Morrison tem essa frase bastante famosa que diz mais ou menos assim: se o livro que você quer ler não existe, você deve escrevê-lo. E, por mais que pareça ingenuidade achar que um livro não existe, o fato é que pode acontecer. Certamente haverá por aí uns romances muito parecidos, com motes desesperadamente semelhantes, ou mesmo personagens de ambiguidade similar, mas os livros que nós queremos escrever – por motivos que só vamos descobrir escrevendo – guardam esse tesouro inestimável da experiência. Escrever literatura contemporânea, em particular, é um verdadeiro trabalho de renovar a carteirinha de ser humano. Toda a matéria-prima dos clássicos está aqui. As angústias, os medos, desgostos e iluminações relacionadas. A novidade é que agora aparecem redes sociais, inteligências artificias generativas e muitos apocalipses para gerenciar.
Para mim, falta falar sobre tudo isso, e se acho que está faltando então devo escrever. Tenho procurado com urgência livros que retratem esse zeitgeist, mas o nosso espírito dos tempos é mais difícil de conjurar porque 1) ainda estamos vivendo 2) o nosso tempo parece muito o fim de todos os tempos. Só parece, eu não tenho certeza ainda se o mundo continuará a acabar. Recentemente li algumas coisas que me chamaram muita atenção nesse sentido. O romance As perfeições, que a Todavia acabou de lançar, é uma delas (um livro que pega de empréstimo a estrutura do Georges Perec em As coisas, o que só reforça a minha deixa de que as ideias nunca são inéditas). No Brasil, gosto muitíssimo do que faz o Vinícius Portella, o corajoso colega brasiliense que é um dos poucos escrevendo sobre essa nossa lama dos relacionamentos afetados pela tecnologia. Não me canso de indicar esse livro de contos dele, que é ótimo.
O ruim de escrever um livro que ainda não existe, no entanto, é que isso envolve ter que acreditar muito naquilo que se permite contar. Não faltam estímulos para desistir, claro. Até que seja tolerável, uma nova história com frequência padece da desconfiança dos leitores. E é muito ruim querer escrever algo para o qual não se encontram referências suficientes. O resultado é que a gente flutua, à deriva na própria criatividade, tentando fabricar um outro universo, igualmente misterioso e anônimo, sem ter certeza do caminho. Criar, no fim das contas, é um aceno muito longo para o desconhecido, nada garante resposta ou resultado, e ainda assim você segue porque está com o verme. Eu adoro o desafio, no entanto. Sem muito talento para pesquisa, sem qualquer senso de ridículo, vou confiando de novo na minha imaginação.
se é para padecer, que seja do excesso de imaginação, e não da falta!
texto lindo ❤️ depois que minha irmã nasceu, eu comecei a ter mais imaginação. impressionante oq a infância faz com a gente! a infância é esse tempo criativo que a gente se esforça pra preservar durante a adultez e é bonito de ver o quanto tu carrega ela contigo