Nos últimos dias tenho refletido sobre o que é escrever bem. Ser bom, verdadeiramente bom, a palavrinha mágica que exclui tudo que não satisfaz. O medo paralisante de ser ruim e fracassar, afinal de contas, é aquele que impede muita gente de fazer. Até mesmo quem já escreveu, e debutou no mercado editorial, e foi mais ou menos lida, de repente se questiona. Será que eu sei escrever? Será que eu sou boa? A dúvida é um bom sinal. No alto da minha maturidade recém adquirida, começo a entender que autores que nunca se questionam são com frequência aqueles que eu (ênfase no eu) acho muito ruins.
Muita dúvida, no entanto, não é saudável. Não quando impede de enxergar as possibilidades ou a importância de escrever. Porque, veja bem, não se trata de ser bom. Às vezes, é sobre ficar bom. Ou sobre aprender em qual categoria você vai competir por uma medalha dourada na olimpíada invisível de quem corre muito e continua sem ganhar nada.
Definir o que é bom é uma missão muito particular e, em alguns casos, um pouquinho dolorosa. Porque envolve olhar para as próprias referências, e olhar para o próprio umbigo pode revelar algumas coisas indigestas, inclusive o fato de que as principais referências são resultados de séculos e séculos de exclusão social e desigualdade. Mas isso é papo para outro boteco.
Falo com muita propriedade sobre o assunto. Por muitos anos, questionar a mim mesma foi o meu ritual diário de comiseração. Eu dormia e acordava traumatizada com a possibilidade daquilo que nunca viria a ser. Nasci e cresci no interior de Goiás, em uma casa sem livros. Meus pais pararam de estudar no ensino fundamental. Meus avós eram analfabetos. Meu pai e minha mãe, na verdade, até hoje não entendem direito minha sanha por literatura (sempre me apoiaram, mesmo não entendendo, porque amor é isso). Apesar de ter frequentado uma universidade prestigiada, eu jamais me senti como se pertencesse àquele ambiente. Como, eu me perguntava então. Como eu vou conseguir ser boa, se de onde eu venho nem sabem para onde estou apontando?
No começo, achei que a resposta fosse emular os meus ídolos. Como uma criança que engrossa a fala e passa gel no cabelo para parecer adolescente, eu queria soar adulta. Depois de ler mais um pouco, resolvi adotar uma pegada urbana, poética de um jeito cafona. E cheguei a arriscar uma proposta de “regionalismo” que era puro suco de desespero. Foi só quando percebi que nada daquilo era real que comecei a me tornar a escritora que me orgulho de ser. Nem um pouco tão boa quanto gostaria, mas muito, muito melhor do que eu era.
O que é bom ou ruim é uma questão particular, sim. Existe técnica, é claro. A técnica também se aprende, geralmente errando muito, e tem quem seja mais versado nela. O que pouco se valoriza, no entanto, é que cada leitor faz seu juízo final. Que nem sempre é definitivo, preto no branco. É um julgamento de muitas nuances, inclusive a de reconhecer o mérito e negar o amor. Há escritores que acho formidáveis, mas não funcionam comigo. Leio, reconheço a grandeza, ainda assim acho que é uma grandeza inócua, porque não me cativa.
Os prêmios de literatura contemporânea brasileira, por exemplo, costumam laurear obras com estéticas arrojadas ou experimentais. É o espaço para isso. O que não significa que essas obras sejam melhores do que as que não são. Ou que os livros juvenis, os romances fantásticos, e as obras comerciais sejam piores em valor. É aceitável, inclusive, odiar um clássico imediato. Há livros para todos os tipos de leitores. O que não é aceitável é forçar goela abaixo dos outros a própria concepção do que é bom.
Mas, Fabi, o que você acha bom?
Acho que Clarice e Virginia escreviam de um jeito lindo, mas não é para mim. Acho que a Toni Morrison era uma escritora de outro planeta, nunca chegarei perto, e está tudo bem. Tenho reverência por Guimarães, mas ele podia ser um pouquinho vaidoso demais quando queria. Adriana Lisboa, Andrea del Fuego e Socorro Accioly estão no meu panteão de contemporâneas. Maria José Silveira, na minha opinião, devia estar sendo mais ovacionada. Isabel Allende é gigante, e sabe disso.
Acho que Kazuo Ishiguro fez alguns livros que eu queria ter feito. Quando crescer, quero escrever como a Elizabeth Strout e a Jennifer Egan. Sally Rooney é uma das poucas que sabe fazer arte sobre este tempo. Alice Munro, deusa maior, foi quem me ensinou a imensidão de um conto. Na poesia, Ana Martins Marques é absurda. Na ficção científica, sou apaixonada pelo Ted Chiang e pelo Cixin Liu. Entre os latino-americanos, Alejandro Zambra, Samanta Schweblin e Guadalupe Nettel são aqueles que idolatro sem dó.
Eu gosto de uma literatura meio miragem, que é o sofisticado que parece simples. Aquela simplicidade que me deixa atordoada. Aprecio frases construídas com a exata medida do que é necessário. Gosto de quem escreve sobre as coisas como se soubesse do que está falando. Amo quem entende da vida e vem me ajudar a entender também.
Escrever bem, para mim, é escrever com verdade. Esquecendo as pretensões, a vontade de ser maior do que é. Sem querer fingir ou imitar. É entender o que se quer fazer, sentar a bunda na cadeira e decidir que vai ser a melhor pessoa do mundo escrevendo sobre aquilo, porque é a única que pode fazer isso. O refinamento e acabamento podem vir depois.
Todo mundo que se preze a ser bom tem que começar a praticar.
E por falar em escrever bem...
O novo livro da Carol Bensimon, Diorama, disparou no meu pódio de melhores leituras do ano porque é a exata definição do que eu acho bom. Quando pego um romance nacional assim, tão bem feito, me sinto inspirada, com raiva, feliz. É uma preciosidade. Recomendo sem ressalvas.
Até a próxima!
Que lindo! Era o empurrão que eu precisava pra seguir escrevendo <3
Muito bom, Fabiane! Deu vontade de escrever, mais uma vez, sobre escrever.
Processo infinito...