Desde o meu primeiro livro, um dos comentários mais frequentes que recebo a respeito da minha literatura é que escrevo de um jeito que é “fácil de ler”. Considero um enorme elogio. Nunca fui o tipo de escritora que escreve para não ser compreendida. O meu conceito de escrever bem passa pela simplicidade, mas não se iludam por isso. Escrever simples é difícil. É também o maior sinal de elegância.
Não é por acaso que o excesso assombra os escritores iniciantes. Quem ainda não tem intimidade suficiente com as palavras tem a curiosa tendência a escolher um tom pomposo e barroco, desfiando longas descrições que soam melosas e artificiais. Eu sei, também já fui assim. São textos que começam com “era uma manhã/tarde/noite de [insira aqui o dia]”, que instalam pessoas como peças de mármore adornadas por roupas ou objetos, e os cabelos, em via de regra lisos, caem sobre os olhos. Com a prática e a constância, se tudo correr bem, a rigidez desaparece. Entra em lugar o movimento, a fluidez estética, a marca de quem escreve pensando no próprio tempo.
Cá entre nós, também não sou muito fã de quem tenta a famigerada prosa poética sem ter talento para tanto. Porque fazer poesia é dificílimo, requer uma aptidão sobrenatural para a decodificação dos fonemas, e um olhar para a beleza que pouca gente tem. Quem tenta produzir coisas bonitas na força bruta corre o risco enorme de falhar. Não se trata de tentar escrever bonito, e sim de escrever diferente.
Uma dica para desengessar o texto é procurar jeitos alternativos de descrever aquilo que é comum (quando for o caso, a depender do narrador). O truque não é procurar palavras diferentes para narrar o cotidiano, e sim procurar formas diferentes usando as mesmas palavras de sempre. Em vez de gritar, por exemplo, um personagem pode cuspir suas ofensas. Em vez de comer, pode despedaçar a comida. Um olhar atípico sempre se destaca. Bons escritores levam o leitor para os lugares mais incomuns, embora ainda reconhecíveis.
Palavras nem são o único recurso. O uso das vírgulas, a cadência, o jeito de organizar os parágrafos, todas as escolhas influenciam, a língua é uma ferramenta. A pontuação diz muito. Se for seca. Direta. Ou, ao contrário, um pouco duvidosa, um pouco fluida, até incompleta...
Um dos trechos mais bonitos já escritos na língua portuguesa é, para mim, os dois últimos parágrafos de Lavoura Arcaica, do Raduan Nassar, por todos esses motivos acima. Espia só:
“e vi a mãe, perdida no seu juízo, arrancando punhados de cabelo, descobrindo grotescamente as coxas, expondo as cordas roxas das varizes, batendo a pedra do punho contra o peito
Iohána! Iohána! Iohána!
e foram inúteis todos os socorros, e recusando qualquer consolo, andando entre aqueles grupos comprimidos em murmúrio como se vagasse entre escombros, a mãe passou a carpir em sua própria língua, puxando um lamento milenar que corre ainda hoje a costa pobre do Mediterrâneo: tinha cal, tinha sal, tinha naquele verbo áspero a dor arenosa do deserto.”
Acho a última linha, especialmente, de uma elegância incrível: o jeito como cal rima com sal (quem disse que rima é ruim?), a comparação do verbo áspero com a dor arenosa do deserto. A alegoria do punho como uma pedra que é batido contra o peito.
Como é bonito e simples.
Não sei como ocorre aos gênios feito o Raduan, mas a mim a escrita só acontece em sua melhor forma depois de polida. Preciso escrever, e depois aparar. Outro dia li essa entrevista bem legal que pergunta a escritores latino-americanos do que eles vivem e com qual profissão comparam a escrita. Eduardo Sacheri, autor de O segredo dos seus olhos, fez uma comparação que me surpreendeu porque eu penso exatamente a mesma coisa. Ele disse: “A mi oficio lo comparo con el de un carpintero, que hace muebles. Me parece que en cada obra de ficción hay un trabajo más básico, más estructural, y después hay lustrado, lija, ajuste de las piezas, un suavizamiento general del producto desde el punto de vista estético. Por eso lo asocio con construir muebles”.
Sempre pensei nessa metáfora, a da carpintaria, porque ela define exatamente o que é escrever. Pegar um bloco bruto de madeira me parece que é o mesmo que se deparar com uma ideia nova. O primeiro trabalho é bruto. É nas aparas, no fino refinamento que vem depois, que se esculpe o texto. Quase em um jogo de Tetris, o lindo é quando tudo se encaixa.
Quando escrevo, não tenho a pretensão de me exibir, fazendo estripulias e outras mágicas, só porque eu posso. Quando leio um livro assim, cheio de garbo e pouca direção, tenho a sensação de que estou diante de um artista a gritar “olha para mim, olha o que eu sei fazer”. Tenho preguiça. Hoje admiro a simplicidade de um texto onde nada parece faltar e todas as coisas parecem caber.
Quando escrevo, sei que nada é inteiramente sobre mim. Amo as palavras, fui me acostumando com elas, por isso mesmo sei quando usar cada uma. É a melhor sensação do mundo, essa de fabricar uma história soprando seus caminhos pela experiência. Se o produto final escorrer pelos olhos do leitor, melhor ainda. Levei muito tempo para aprender a escrever desse jeito fácil.
Antes de ir embora...
Estamos chegando aos últimos dias da pré-venda do meu segundo romance, Como se fosse um monstro. Você pode conferir um pouco mais sobre o livro e reservar o seu com preço mais baixo aqui.
Adorei a newsletter de hoje! Penso muito sobre isso e me marcou muito ter lido Como escrever bem, de William Zinsser, pois ele fala muito sobre isso. Ler, reler e reescrever sempre pensando na simplicidade.
Estou lendo desde ontem "Por que escrevo" de George Orwell, e penso que combina muito bem com o que você fala da simplicidade da escrita (e da vaidade dos excessos também). Sobre o autor de O Segredo dos Seus Olhos (eu amo tanto essa história!) e a carpintaria, me lembrei de um trecho de texto do meu amado Graciliano Ramos, em que ele compara com o trabalho das lavadeiras de Alagoas:
“Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa; a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”.
Salvei seu texto como referência, pois estou justamente estudando "por que escrever", e escrever simples e sincero é o tipo de escrita mais bonita e agradável que existe.