
Agora que a Mundaréu finalmente liberou o e-book, comecei a ler Solenoide. Estou deglutindo devagar, no tempo merecido, mas já dá para perceber o motivo de tanto frenesi. Apesar de achar esse um daqueles livros especialmente talhados para os leitores que também são escritores, consigo sentir as pancadas de genialidade marcando o passo, é um romance robusto, não em termos de tamanho (também), mas de sensações. A habilidade do Cartarescu é tão grande que faz a gente se perguntar: esse homem tomou alguma droga, estava embutido de espírito obsessor, escreveu esse troço em transe? Trata-se de uma obra-prima, óbvio. Não preciso de muito para saber, e só isso diz tudo.
Tenho uma relação complicada com elas, as obras-primas. Não que me bata qualquer ressentimento. Quando leio algo assombroso assim só consigo pensar o quanto tomei um capote em forma de aula. Fico torcendo pela reprodução via osmose. Nunca deixarei de lado a humildade de tentar aprender como se faz um negócio tão bom. Há um mecanismo, geralmente feito de tempo, de prática, ler os grandes talvez seja uma forma de atalho, você pode dissecar o animal para entender como foi criado e às vezes se lambuza nas vísceras, na esperança de se contaminar um pouquinho delas. O problema, no entanto, é que nem todo mundo conseguirá escrever uma obra-prima. A maior parte de nós, pelo menos, nunca vai conseguir.
Há quem se sufoque com essa contradição: a urgência de escrever combinada a uma completa inaptidão técnica. No começo, patinamos horrivelmente. O próprio protagonista de Solenoide é um escritor (um chato de galochas, mas estou só no começo) que, após beber da fonte de todos os grandes mestres, acredita ter esculpido uma obra-prima do lirismo, só para ser execrado em praça pública ao ler seu poema (devia estar ruim mesmo). O sujeito recolhe os cacos e decide se afundar em delírios numa casa esquisita, algo transcendental, chorando suas pitangas pelo resto da vida, jurando não escrever mais nada e escrevendo ainda assim.
Se é uma verdade indiscutível o fato de que um bom escritor deve ser sempre um ótimo leitor, o contrário não acontece. Nem todos os ótimos leitores dão bons escritores. Alguns se deixam paralisar pela carga infinita de referências, afogados na própria mediocridade, não faz mesmo sentido escrever, faz? O que você vai acrescentar nessa mesa onde tanta gente incrível já se sentou? O que você tem para dizer de tão bonito e relevante, que ainda não foi dito por alguém muito mais talhado ao trabalho de observar?
Os antagonistas da literatura brasileira contemporânea, especialmente os ranzinzas e os pertencentes à ala geriátrica, bafejam contra as nossas estantes. Esculacham essa produção rasa, didática, pobre, conteudista. Posso até concordar com a inanição de alguns romances, com frequência concordo, tem mesmo muita coisa ruim sendo publicada. Por outro lado, não deixo de me pegar refletindo: tá, e aí? Ainda não somos bons o bastante, talvez nunca estaremos à altura, mas não temos sequer o direito de tentar?
A literatura precisa de renovação. Ela só se renova quando a gente continua fazendo, metendo as mãos no sagrado, reinventando os modos de contar, enterrando o pé nos cânones, exige coragem, coração e um monte de outros ingredientes sentimentais.
Não gosto muito de clássicos. Leio, já li a maioria, ainda assim não gosto. Com exceção de algumas obras pontuais, não é uma leitura de abrigo. Pode me encher os olhos, posso reconhecer a grandeza, mas a grande questão é que nem sempre a grandeza me acalenta. Gosto mesmo é de ler as traduções do nosso tempo, sou guiada pelas palavras de quem morreu faz pouco ou acabou de nascer, especialmente as palavras das mulheres. Esse é um motivo pelo qual não gosto muito de clássicos: eles falam uma língua que muitas vezes não me comove, porque a minha parcela de humanidade demorou a ter voz, e quando se trata de literatura o reconhecimento é fundamental.
Somos medíocres, mas isso não é motivo para abandonar toda e qualquer pretensão literária. Primeiro, porque muito se pode aprender. Segundo, porque há estágios de escrita, vamos evoluindo aos poucos, e mesmo os trabalhos mais frescos podem guardar algum valor. Penso nisso quando olho para os meus dois livros publicados. Não são geniais, estão bem longe disso, também não creio que sejam horríveis. São razoáveis, foram finalistas de prêmios importantes, seguem lidos e apreciados por uma quantidade considerável de pessoas. Acima de tudo, são dois pequenos romances nos quais entreguei o melhor que eu podia naquele momento. Posso fazer mais. Tenho como lema pessoal: o melhor livro que escrevi ainda vou escrever.
É muito bom ir subindo a régua. Mirar apenas a grandeza, no entanto, pode fazer com que você perca o aprendizado valiosíssimo do caminho. Escrever é uma dessas atividades horrorosas que só se aprende fazendo, portanto, não dá para se amparar apenas nos edifícios teóricos. Do que adianta um texto na beca, cheio de panca, sem uma mísera dose de coração? Ter a coragem de sentar à mesa e escrever ficção no mesmo lugar onde Clarice e outros se sentaram também é um gesto de aceno aos deuses do Panteão criativo. Estamos aqui. Somos pequenos e frágeis, algumas vezes burros e inconstantes. Por favor, se um dia for possível, nos iluminem. Quem sabe a obra-prima nos alcance. Nem que seja de segundo grau.
Literatura é roda de conversa (uma mesa de bar GIGANTE), e a gente participa de uma conversa quando tem algo a dizer e gosta do assunto. Adorei seu texto. Embora adore os clássicos, sempre indico o novo.
Gosto de uma frase do Charles Kiefer sobre essa comparação de gênios: "Literatura não é corrida de cavalos". Acho que diz tudo.