
Na semana passada voltei com tudo ao Tiktok, a rede perniciosa e jovem que pratica um nível de hipnose quase demoníaca e deixará sequelas na própria evolução humana – alguém duvida de como a massa cerebral vai ser alterada em algum punhado de anos, com tanto treinamento de atenção curta? Enfim, voltei, sou uma vaca caminhando com tranquilidade pela passarela do próprio abate, aceito com docilidade as ferramentas do futuro, se quero sobreviver preciso aprender a linguagem. Não que eu seja uma estranha àquele caldeirão miserável de almas. Há quatro anos viralizei por lá. Quando digo viralizei, estou dizendo no sentido mais absurdo da coisa: ao postar um vídeo despretensioso da casa que estávamos reformando, mesmo morando de aluguel, ganhei milhões de visualizações e milhares de seguidores da noite para o dia. Na época me empolguei, fiz muitos registros, abri lives, interagi como se soubesse brincar. Depois, entrei em pânico. Um dia percebi que nada daquilo fazia sentido para mim, para a vida que eu queria, então apaguei todos os traços do momento irmãos à obra e comecei a gravar apenas vídeos de literatura. Metade dos seguidores me abandonou. A conta é uma conta moribunda, meus vídeos não passam de 200 visualizações, mas vou continuar gravando aleatoriedades na esperança de alcançar quem me leia. Às vezes é bem divertido.
Parte do meu motivo para voltar foi angústia. Não vou mentir: essas duas semanas de eventos literários, Bienal e Feira, me abalaram. Sei que não posso estar presente, já fiz as pazes com minhas escolhas de vida e as limitações resultantes, mas é difícil ver toda a sua galera reunida em um mesmo lugar e não estar lá para vender o seu peixe. Eventos literários são uma peixaria gigantesca, aliás, um mercado municipal, congrega todos os pobres pescadores arrastando seus carrinhos cheios de gelo, até houve quem levasse os meus tambaquis para mim – meu livro estava exposto com boa visibilidade nos estandes da Companhia, relataram amigos. A ausência, entretanto, cobra seu preço. Voltei ao Tiktok porque ano que vem lanço um livro novo e preciso jogar com as cartas possíveis. Você não precisa ser influencer para ser escritor, mas ser invisível está fora de questão.
Engraçado porque alguns dos primeiros vídeos que me apareceram no Tico Teco foram, justamente, de escritores desiludidos com a Bienal. Acho que vi uns três na mesma pegada – autores independentes sentados sozinhos em suas mesinhas de autógrafos, sem ninguém para prestigiá-los. O coração até encolhe de dó. Milhares de curtidas, bingo: no Tiktok, ao menos, um sucesso. O brasileiro, até mesmo o brasileiro que não lê, adora adotar uma vítima. Isso funciona bem, embora nem sempre contribua ao objetivo final, porque leitores são entidades místicas que não sucumbem a estratégias rápidas. Enquanto metia o dedo sem dó no curtir, fiquei pensando com meus botões – o que vocês esperavam? Ser escritor no Brasil é estar disposto a lutar por migalhas. Se a pessoa entrar nessa esperando receber números imediatos, corre o risco de morrer de pura decepção.
Lembro até hoje do primeiro evento literário que fiz na vida, uma feira do livro improvisada dentro de um shopping aqui em Brasília. Falei para uma plateia de apenas duas pessoas, sendo que as duas eram minhas amigas. Eu não liguei: ainda nem tinha publicado o Apague a luz e recebi um cachê bastante decente por ter participado (ser paga era um luxo). Em outro evento, dessa vez com uma colega escritora muito talentosa e conhecida, também fomos agraciadas com um público minguado, composto basicamente por nossa família. Foi ótimo, vendi quatro livros, comemorou minha amiga, ao fim da noite. Só isso já dá uma ideia da situação.
Lançar livros, para mim, é um martírio. Eu sempre fico me perguntando se alguém vai aparecer, é aquela velha ansiedade da criança que faz uma festa de aniversário e tem medo de ser abandonada pelos convidados. Nas minhas duas experiências prévias, o público foi inflado pela presença dos meus amigos e familiares. Sabe aquele negócio de não precisar ser apoiado pelas pessoas que te amam? Bom, eu não faço questão que me leiam – não faço mesmo, até prefiro, tenho uma vergonha enorme de ser lida por quem me conhece. Quando as pessoas saem da casa delas para estar presente por mim, no entanto, e gastam seus setenta reais no livro que provavelmente não vão ler, isso diz muito sobre o quanto me amam. Apoiar o artista da sua família ou do seu grupo de amigos, mesmo que você não consuma a arte, é um gesto de amor profundo.
Muitos se surpreendem ao me ouvir falar sobre como é difícil essa vida, acham que estou me fazendo. Se você que está em editora grande e já tem um público precisa de tanto esforço então a estrada é bem longa, comentou uma leitora querida. Sim, a estrada é infinita, eu mesma estou rodando há quinze anos, os resultados que estou vendo hoje comecei a plantar lá atrás. É preciso ter muita disposição para acordar, todos os dias, e insistir nisso. Disposição, paixão e um pouco de loucura. Não é a decisão mais lógica do mundo, vou te dizer.
Há dias em que dá uma puta vontade de desistir. Você olha e pensa: meu deus, eu podia ter estudado para um concurso, sabe? Podia ter feito outra faculdade (esses dias me peguei pensando que seria uma ótima advogada). Mas aí você abr
e o computador, como acabei de fazer, e tudo parece simplesmente certo, o cansaço de dias e dias cuidando de duas crianças desaparece, as preocupações com dinheiro somem na hora. Escrever me traz uma alegria inexplicável, não sei como justificar. Mesmo quando estou toda virada do avesso, toda desarticulada, amo pegar minhas palavrinhas amassadas e colocar tudo em ordem, bem engomadinhas e enfileiradas, é um negócio que me acalma, me conserta, me dá gosto.
Os números de alguns escritores como o Itamar, a Carla Madeira, o Raphael Montes, Socorro Accioli e a Aline Bei, entre outros autores best-sellers, são espantosos e muito difíceis de alcançar. Não são para todo mundo e nem devemos nos guiar por eles. No caso do Rapha eu posso falar com propriedade, porque acompanho desde o início (e quando digo início é início mesmo, lembro das coisas que ele escrevia aos catorze anos). O sucesso que ele está colhendo também foi uma trajetória construída com muito trabalho e talento. Assim como é o caso do Itamar, da Carla, da Socorro e de todos os outros. Alguns críticos podem até ficar costurando suas lamúrias de sempre, mas a verdade é que fazer sucesso comercial é um baita feito neste país de tão poucos leitores. Os colegas que estão conseguindo dão uma baita injeção de esperança.
É difícil, mas não impossível. Ao olhar para os números eu me pergunto: onde estão essas pessoas? Onde estão esses milhões de leitores qualificados que apostaram na Carla e no Itamar? A verdade é que a literatura brasileira contemporânea ainda é um nicho, uma bolha, e o que esses autores conseguiram é ir além. Porque, embora desconheça como chegar nelas, eu sei quem são essas pessoas. Elas não acompanham o Substack, não estão por dentro das picuinhas do mercado editorial, são apenas leitores, provavelmente passaram a vida consumindo literatura estrangeira e é isso o que mais leem hoje em dia. Compraram o livro nacional porque ouviram falar que era bom, gostaram, recomendaram aos amigos. Não conhecem muito mais do que isso. Tenho muitos leitores que se encaixam nessa categoria – professores, advogados, psicólogos e jornalistas completamente alheios ao mundinho literário. A maioria só leu meu livro porque me conhece, caso contrário nunca teria ouvido falar.
O que a gente precisa é encontrar mais formas de furar essa bolha. Sair da nossa posição de vítimas, pegar o nosso trabalho pelos chifres e ir ali mostrar. Sei que é frustrante, em um primeiro momento, cair para dentro e só receber um punhado de nadas. Mas acredito naquele ditado da água que fura a pedra. Estou tentando furar um paredão enorme, à distância e sem patrocínios, por isso reativei até o Tiktok. Vou conseguir? Sei lá. Mas algo me diz para continuar tentando.
Estou lendo seu livro sem te conhecer 😊 aliás, seu nome chegou para mim através da literatura. Fabiane Guimarães não é uma amiga a quem apoio um trabalho (embora eu iria adorar se fosse). É uma mulher escritora que estou lendo pelo prazer de apreciar as palavras amassadinhas colocadas em ordem. Tem alguma coisa dando certo na tua trajetória. A bolha já foi furada!
Carissima Fabiane.
Eu lí o seu livro “Como se fosse um monstro”. Sou médico ginecologista e uso todas as forms de textos literários como um instrumento terapêutico. Na pandemia do Covid19 iniciei uma atividade virtual, lendo textos para grupos de mulheres reclusas em casa. Isto ajudou muita gente a enfrentar aqueles dias sombrios. Faço parte da “Academia Nacional de Ginecologia e Obstetrícia”. Em maio-25 fiz uma conferência no Rio de Janeiro sobre “A literatura como um instrumento terapêutico”. Citei várias obras naquele evento, dentre elas o seu livro. Mostrei para aquela plateia que ninguém conta a história da doadora do útero, a barriga de aluguel. Hoje vivemos o fenômeno Claudia Raia, onde tudo dá certo, e é cor de rosa, quando na verdade não é. Sugeri a leitura do seu livro, e posso garantir que muitos ficaram tocados, pois vieram falar comigo depois da apresentação. Tenho dois convites para repetir aquela conferência para outros públicos. Vou falar de novo do seu livro.
Isto talvez lhe sirva de um afago, quando percebo que você não está feliz. Você é uma grande escritora!
No fundo a gente escreve para poder viver. Sem a escrita a vida fica incompleta. A angústia de ser lido(a) não pode tomar o lugar do prazer em escrever. Eu ficaria muito feliz em ter um dos meus textos lidos por você. Felizmente a medicina garante o meu ganha pão.
Por isso estou no Substack gratuitamente. Continue escrevendo. Grande abraço
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