Para ser escritor precisa ter formação?
A opinião de uma escritora caipira

Nesta vida sempre achei que fosse uma pessoa inteligente. Todo mundo dizia isso, inclusive meus pais, enchendo a boca com uma espécie de orgulho que só quem nasceu e cresceu na roça (e não passou do primário) experimenta. Estudei a vida inteira em um colégio particular, porque a minha mãe fez o que fosse possível para que eu e minha irmã tivéssemos o que ela não teve. Fiz cursinho de inglês, assistindo a episódios de Friends nas horas vagas, sem legenda para aprender mais rápido. Minhas notas eram boas sem que eu me esforçasse muito, e me davam o título de CDF, anterior ao Nerd. Aos onze anos, era uma menina bem magrinha que amava ler e escrever, já sabia que queria ser escritora, e na hora de pleitear uma vaga na universidade pública, sete anos depois, segui um dos caminhos mais básicos para quem vive sonhos assim impossíveis – escolhi jornalismo. A outra opção teria sido letras, mas achei que combinava menos comigo.
Quando cheguei à Universidade de Brasília (UnB), no entanto, o meu castelo de certezas despencou em câmera lenta. Fui aprovada quase em segunda chamada, o que significa que passei literalmente “raspando”. Ao conhecer os meus colegas de turma, percebi que eu não era nada brilhante como acreditava. Na universidade conheci pessoas que tinham tido acesso à educação mais refinada e competitiva possível, que falavam um inglês potente e desembaraçado e já haviam visitado outros países. Pessoas que também gostavam de ler e escrever, e não só escreviam melhor, mas também conheciam autores dos quais eu nunca tinha ouvido falar. Gente com arcabouço crítico que bebia das palavras de Simone de Beauvoir e David Foster Wallace, que ouvia Caetano e Bethânia, enquanto na minha casa tocavam Milionário e José Rico, e só liam a Bíblia. Confesso que, aos dezoito anos, me senti muito perdida. Eu era, definitivamente, uma caipira.
Lembro de nessa época recorrer a uma tia, professora do ensino fundamental, para desabafar. Além de tudo, eu sentia que não conseguia alcançar o mesmo desempenho em algumas matérias, especialmente as mais teóricas. Para onde havia ido toda aquela inteligência? Ela foi pragmática: “é melhor ser a pior entre os melhores, do que a melhor entre os piores”. Isso ficou na minha cabeça, às vezes ainda me vejo seguindo essa filosofia.
Retorno a essas memórias porque recebi uma pergunta muito boa de uma leitora ou leitor. A pessoa queria saber “se formação acadêmica em determinados assuntos e conhecimento técnico em literatura são necessários”, e me pediu para falar sobre a importância de saber sobre normas gramaticais e como trabalhar sua confiança em sua escrita.
Da minha perspectiva caipira, posso confirmar que o abismo cultural e a falta de bagagem acadêmica me fizeram duvidar que eu pudesse ser escritora. Isso era algo que me angustiava de verdade. Por outro lado, não tinha outra coisa que eu gostasse mais de fazer, então busquei refúgio na internet, em comunidades do Orkut, onde conheci outras pessoas tão jovens quanto eu, e percebi que nem todo mundo vinha do mesmo lugar. Demorei, mas logo caiu a ficha de que a minha cultura, apesar de ser alvo de escracho, não era menos importante. Do que não sabia, fui atrás de saber, e segui escrevendo. Criei blogs, mandei textos para antologias, e pouco a pouco fui percebendo, pelo exercício da comparação, que eu tinha alguma coisa. A falta de conhecimento não havia roubado a minha verdadeira natureza. Não era, certamente, a escritora mais talentosa do mundo. Mas podia aprender e melhorar.
Aprender, no entanto, sempre foi um desafio, pelo menos no sentido clássico do termo. Já escrevi aqui outras vezes, e não tenho a menor vergonha de admitir, mas eu não gosto de estudar. Se na escola eu passava bem e com relativo brilho, na faculdade era preciso frequentar as aulas, ler os textos de apoio e me comprometer com ementas longuíssimas. Logo cedo descobri que não gostava do ambiente acadêmico. Lembro que na primeira oportunidade escapava da sala e passava as horas vagas no meu refúgio espiritual: a BCE, biblioteca da UnB. Se alguém consultasse o meu histórico de empréstimos, veria que eu quase nunca pegava os livros que deveria estar lendo (volumes sobre teoria da comunicação, livros reportagens e coisas do tipo). Eu gostava mesmo era do acervo de ficção, levando para casa as dezenas de romances que nunca tinha dinheiro para comprar. Pela primeira vez, tive acesso a um volume irrestrito de livros de vários gêneros diferentes. E essa foi a melhor educação que eu poderia ter.
Então, respondendo à pergunta recebida, eu diria que ninguém precisa ter um bacharelado ou um mestrado para escrever. Não é preciso vir de lugares privilegiados, ter acesso aos autores eruditos e conhecer todas as normas gramaticais. Existe uma elite intelectual que por muito tempo dominou – e ainda domina – a cena literária brasileira, mas muitos muros foram derrubados nos últimos tempos. Não aceitamos mais o discurso da literatura como uma arte inconcebível à periferia, por exemplo, e da escrita como um caminho de poucos e ilustres. Ainda há barreiras enormes, claro, e pode ser cansativo contemplá-las de vez em quando, mas é possível existir nesse lugar, exercitar o amor pelas histórias, mesmo que o seu berço não tenha sido forrado com palavras. O meu, no caso, era feito de poeira.
Isso não significa, contudo, que é desnecessário se aperfeiçoar. Não é porque você nunca teve acesso ao conhecimento que não deve procurá-lo. É inadmissível que alguém queira ser escritor e não se dedique à leitura. Você não precisa seguir uma carreira acadêmica, se não quiser, mas deve sim ser um leitor aficionado, lendo de tudo um pouco e se atentando aos aspectos técnicos. Eu, que não gosto de estudar, nunca fui muito fã de consultar gramáticas, mas já fiz isso incontáveis vezes, porque o português é uma língua linda, mas toda essa beleza cobra seu preço. Há certos aspectos técnicos que aprendi na marra e de forma totalmente autodidata, aspectos aos quais hoje recomendaria que todo escritor iniciante se atentasse: em especial a questão dos tempos verbais, de como usar o pretérito mais-que-perfeito; a pontuação de diálogos e palavras no geral; e os detalhes do novo acordo ortográfico.
Quando olho para trás, penso que gostaria muito de ter feitos cursos e oficinas literárias que agora estão amplamente disponíveis na internet. Sinto que teria me poupado um bocado de tempo. Há muitos escritores, editores, professores de literatura e pessoas do mercado editorial compartilhando seu conhecimento prático, que é, pelo menos para mim, o conhecimento mais valioso que tem. Na época em que comecei, no entanto, não havia muita oferta desse tipo de coisa. Minha educação, como eu disse, foi na base da leitura. Os cursos de escrita, contudo, podem ajudar muito, mesmo que não sejam imprescindíveis.
O que importa, no fim das contas, é a sua visão de mundo e como você a aplica às narrativas. Mais do que as suas escolhas cerebrais, é o coração colocado no texto que vai ditar o rumo da prosa (ou poesia). O que faz um bom escritor é a capacidade de espremer a sensibilidade para descrever o mundo, não as acrobacias estéticas. A técnica é uma coisa que se aprende: o que importa aos artistas é ter alma.
Ainda me sinto imensamente caipira, ainda me comparo com outros escritores mais versados na arte e sei que preciso aprender mais. Grande parte do caminho, no entanto, já foi percorrido. Hoje vejo que a educação que eu recebi conta muito menos do que todo o tempo e esforço utilizado escrevendo. De certa forma, acho que o meu desapego ao estudo formal até me ajudou a abraçar a imaginação. Conheço pessoas com trajetórias brilhantes na área acadêmica que sentem grande dificuldade de se desgarrar das regras rígidas da academia na hora de escrever histórias, e já perdi a conta de quantas vezes ouvi a confissão de escritores no armário. Como sou escritora e me posiciono publicamente assim, vira e mexe sou puxada de canto nos eventos, e a história que escuto dessa galera é sempre a mesma. Encontro advogados, jornalistas, professores e até políticos – muita gente que abandonou o lado criativo para buscar uma vida mais pé no chão, e hoje lamenta não ter tanta intimidade com as palavras. Para essas pessoas, um incentivo: nunca é tarde para começar ou recomeçar. Escrever é de graça e não exige chancela de absolutamente ninguém.
Vinda do interior também entrei numa UF. Fiz a escolha do curso possível, dadas as minhas circunstâncias. Não só por isso, a faculdade foi a frustração de um sonho de Ensino Superior para quem,CDF, sempre colocou os estudos como prioridade de vida. Essa formação não foi importante, a não ser pelo diploma, para a minha profissão. Quanto à escrita, outro sonho abandonado, aprendi que ela se conecta ao público, antes de nascer. Entendo que, geralmente, intelectuais escritores escrevem para um nicho, pequeno se considerarmos o Brasil. Ok, como propósito, mas há tantos outros públicos, ávidos por boa literatura, nua de adornos intelectualizados.
Concordo com você: escrever se aprende pela leitura e na luta para amansar as palavras. Abr