
Ontem, enquanto amamentava, comecei a escrever uma história nova. Ainda não sei direito para onde vai, só sei que é uma história que estou mastigando dentro de mim há alguns anos, e se ainda não tinha exercido seu direito de existir era por não saber começar. Meu processo criativo funciona assim: preciso ter uma boa frase de início, uma espécie de pedra angular, essa é a cabeça da serpente, a cabine que vai puxando o resto do trem. Foi então que a sentença perfeita me ocorreu, bem ali durante a ocupação de mamífera, do jeito mais inesperado. Nessas horas recorro ao bloco de notas do celular, meu instrumento mais frequente de escrita. Enquanto amparava a bebê com os braços fui digitando, de repente já tinha o comecinho dessa coisa nova, três parágrafos inteiros. É um começo auspicioso, combina com o meu brotinho de vida fresca, que tem duas semanas de mundo, ainda não sabe que nasceu e requisita meu colo todos os minutos do dia. Escrevo esse texto com ela pendurada no sling, porque foi a única forma de escrever. Porque ela dorme, eu escrevo. Ao contrário do que muitos acreditam, ser mãe aguça a minha imaginação.
Penso que demorei muito para ter consciência do que era ser uma mulher que escreve. Fui criada em um lar amoroso, porém regido pela batuta do machismo. Até os meus dezesseis ou dezoito anos, todos os protagonistas dos meus arremedos de ficção eram homens. Levei muito tempo para conseguir enxergar os impactos que as narrativas predominantemente masculinas tiveram no meu arcabouço criativo, mais tarde demorei a entender que esse jogo era jogado por eles, e não vou aqui entrar em detalhes sobre quão misógino o mercado editorial segue sendo, apesar dos progressos, apesar das homenagens e dos confetes que hoje serão regra nas redes sociais. Estou cansada demais para isso.
Eu acho que as mulheres escrevem melhor do que os homens, um amigo, também escritor, certa vez me confessou.
Pois eu tenho certeza, respondi meio brincando, e falando muito sério. Há na escrita um requisito à empatia que muitas vezes falta a alguns homens, não por qualquer indisposição natural, mas por pura e simples falta de hábito. Homens sérios, de barba desgrenhada e postura rígida, que nunca viveram a experiência de questionar o próprio talento; que se afundam tanto na própria importância a ponto de esquecer como acessar a ternura. Até podem dar bons escritores, eu não saberia dizer. Há muito tempo leio mais as mulheres. Ninguém sente tanto as dores do mundo, nem entende melhor a noção do que é viver em um corpo marcado pela matéria. É por isso que às vezes sabemos melhor como dizer as coisas: fomos nós que ensinamos a nomear.
A injustiça é que sejamos, ainda, tão inseguras. Os rapazes quando escrevem não precisam de muito para empunhar por aí o título de escritores, logo agarram seus manuscritos e os defendem com unhas e dentes (e estão cobertos de razão por isso). As mulheres, por outro lado, levam muito mais tempo para assimilar a ideia de que não precisam de autorização para escrever. Sentem vergonha, titubeiam, se questionam se são boas o suficiente – na maioria das vezes, elas são. O que me dá mais raiva é que são tremendamente boas, mesmo que ainda não sejam perfeitas.
Ser uma mulher que escreve é ocupar permanentemente esse lugar de dúvida, a ponto de conjugar síndromes no feminino. De ter a nossa própria literatura classificada como “feminina”, como se isso dissesse alguma coisa muito excludente a respeito do teor daquilo que escrevemos, como se tudo que narramos não fosse universal; e arranjar tempo para escrever, mesmo com uma carga enorme de afazeres domésticos. É escrever sobre sexo, sem inibições, e ser julgada por isso. Ser escritora também é criar uma nova história no bloco de notas do celular, no escuro, enquanto amamenta – guardando grandes esperanças de que poderá continuar escrevendo enquanto cria um pedacinho de universo.
Porque é verdade que o tempo criativo, quando se é mulher, sofre um significativo encolhimento. Para muitas de nós, escrever compete diretamente com atividades de cuidado, seja com os filhos, pais idosos ou outras modalidades que acabam por recair no nosso colo. O ofício carrega ainda outras peculiaridades: lidamos com transformações brutais na natureza corporal, variações hormonais que nos tiram o calibre da razão, e se somos convidadas para eventos e residências literárias precisamos questionar, sempre, sobre a segurança do local e hospedagem. Além disso, é sabido que a aparência de uma escritora estará permanentemente em vigilância. Caso a autora se encaixe em determinado radar demográfico, sofrerá constantes avaliações para determinar se é ou não gostosa. E, se por acaso for, é provável que digam que não escreve bem.
Não é exagero dizer que perdemos mais oportunidades pelas complexidades dessa existência. Há algumas semanas, por exemplo, fui convidada a participar do podcast de um famoso influenciador literário, o que seria uma ótima vitrine para os meus livros, mas tive que cancelar a gravação porque... entrei em trabalho de parto (espero muito poder remarcar).
Eu levei sim algum tempo para descobrir o que era ser uma mulher que escreve. Não me surpreende que esteja fazendo isso agora, no momento mais exaustivo da minha vida, com apenas duas horas de sono na conta.
Não me surpreende nadinha.
"(...) preciso ter uma boa frase de início, uma espécie de pedra angular (...)", vou dizer que isso é perfeito na escrita, embora, eventualmente, preciosismo. Faço mea culpa, porque também tenho dessas.
"Eu levei sim algum tempo para descobrir o que era ser uma mulher que escreve. Não me surpreende que esteja fazendo isso agora, no momento mais exaustivo da minha vida, com apenas duas horas de sono na conta.", muitos talvez pensem que não, mas o resultado disso haverá de ser lindo.
O laço do pacote é algo que nós, homens, precisamos entender: deixarmos de ser machistas, homofóbicos, racistas, e entendermos que a mulher sabe o que faz.
Adoro te ler e quis escrever um comentário só para agradecer por essa imagem da mãe escrevendo onde pode, quando dá. <3