Quando tinha meus vinte e poucos anos e trabalhava como estagiária no Correio Braziliense, recebi a crítica mais pesada da minha vida. Meu chefe, naquela época, tinha o hábito de corrigir a caneta os textos dos estagiários, o que eu adorava. Sempre fui uma repórter que escrevia sobre a verdade querendo escrever ficção, talvez por isso tenha desistido do jornalismo, e nesse jornal tomava algumas liberdades bem literárias nas minhas reportagens. O tal chefe, apesar de ser um troglodita com leves tendências assediadoras – como a maioria dos editores de redação – era um homem inteligente. Eu o respeitava e ouvia com ansiedade tudo o que me falava. “Você escreve bem, Fabiane”, até que ele me disse um dia. “Você só não escreve tão bem quanto você acha.”
Digo que essa crítica foi a mais pesada que já recebi porque foi a que mais doeu. E olha que já ouvi muita coisa sobre as coisas que escrevi. Esse mesmo chefe, uma vez, rasgou um texto meu na frente de todo o jornal. Sim, imprimiu só para ter o prazer de rasgar, em uma cena melodramática meio O diabo veste prada, que me deu mais vontade de rir do que de morrer. Quando ele disse aquilo, no entanto, eu não estava preparada para ouvir. Aquela crítica doeu porque me atingiu o canto mais sensível de qualquer artista, essa coisinha deliciosa chamada ego. Doeu porque era, em certa medida, uma verdade.
Escritores são criaturas egocêntricas. Acho que qualquer tipo de arte exige ali uma certa prepotência. Quando você cria uma coisa que não existia antes, o primeiro impulso é se admirar com a própria capacidade. Em alguns círculos sociais, as pessoas aplaudem as pessoas criativas simplesmente por existir, mas não são os elogios e os tapinhas nas costas que fazem um bom artista. As críticas servem como âncora ao mundo real, mostram que o nosso trabalho nem sempre ressoa como a gente pretendia. O erro que eu cometia naquela época, agora vejo, era pensar que tudo que eu fazia era bom, só porque tinha a coragem de fazer. Demorei a entender que estava crua. Não é que não fosse desprovida de talento (embora eu não goste desse conceito), é que estava tão cheia de mim que não conseguia transbordar.
Ninguém gosta de ser criticado. É péssimo ouvir que o seu cabelo é feio, que o seu corpo é inadequado, que aquilo que você faz é ruim. Escrever é uma atividade tão íntima que é difícil separar-se da coisa criada, e ouvir alguém criticar aquilo que foi escrito às custas de tanto esforço e tempo dói. Lançar um livro, então, é um pesadelo.
Sempre achei que tivesse aprendido a lidar melhor com críticas graças ao laboratório sadomasoquista do jornalismo, mas, às vésperas de lançar o “Apague a luz se for chorar”, quase tive um troço. Precisei de não sei quantas sessões emergenciais de terapia. Acontece que eu não fui criada para a exposição. Pelo contrário. Meus pais sempre foram adeptos da filosofia de nunca contar vantagem sobre as coisas, nunca expor os próprios talentos e, principalmente, nunca chamar atenção. Humildade, na minha família, sempre foi o traço de caráter mais valioso. Demorei muito tempo a adquirir autoconfiança por esses e outros motivos. Publicar um livro, o maior sonho da minha vida, exigiu um esforço enorme de me livrar do meu próprio senso de inferioridade.
Há várias formas de lidar com uma crítica. Tem gente que rejeita, pisa duro, reclama e vai atrás de quem criticou; o que é uma imbecilidade sem tamanho. Outros entram em depressão profunda e juram nunca mais produzir nada, o que é outra imbecilidade. Por muito tempo, estive mais propensa a ser do segundo grupo. Mas a experiência me ensinou que a crítica não é um monstro de sete cabeças definidor do meu trabalho. E, mais importante de tudo, a crítica do meu livro não é sobre mim.
Acho que o melhor conselho sobre como lidar com isso veio do meu amigo Rapha Montes que, por sua vez, recebeu o conselho de outra pessoa. Conselho bom a gente faz questão de repassar. O que ele me disse, quando eu estava ali prestes a debutar no mercado editorial e sofria meus faniquitos, foi o seguinte: sempre vai ter gente dizendo que ama o que você faz, que você é um gênio, e sempre vai ter gente dizendo que tudo que você faz é uma bosta. Mas você não é nenhuma das duas coisas.
Você é uma artista fazendo seu trabalho da melhor forma que pode.
A literatura floresce na subjetividade. Cada livro encontra os leitores de uma forma muito particular. O que eu acho ruim, por exemplo, não é o mesmo que outras pessoas acham. Quem escreve tem que entender que nunca vai agradar todo mundo, que não é pensando em agradar que deve fazer isso. Um dia desses me perguntaram o que eu queria alcançar com a minha famigerada carreira literária. Respondi que é escrever o que eu quero, escrever uma coisa da qual eu me orgulhe. Se essa coisa vai ser sucesso ou não com os leitores, se vai ganhar prêmio ou vender livro, não está nas minhas mãos.
Mas isso não significa que é preciso ignorar a leitura negativa, óbvio. A crítica, especialmente a crítica especializada, é um instrumento para crescer. É preciso escutar os leitores profissionais, porque nada nasce pronto, e quem acha que não tem nada para melhorar geralmente é quem mais precisa. Uma coisa que me irrita é essa incapacidade de entender que criticar um texto não é agredir ou invalidar o escritor. No Brasil, parece que a crítica é uma ofensa pessoal. O que é tanto culpa de quem critica quanto dos autores mais melindrosos.
Quanto às pessoas que evitam escrever ou não mostram seus textos por medo de ouvir o que não esperam, recomendo que criem coragem. A verdade é que ninguém é bom o bastante até que se preste a arriscar e fazer. Sentar e escrever um livro dá uma outra dimensão sobre os desafios, desafios que só existem na hora do vamos ver da escrita e, portanto, só podem ser superados escrevendo. Também é verdade que, para além das críticas que vão ser verdadeiras e úteis, sempre terão os urubus, os “engenheiros de obra pronta”, que criticam sem nunca tentar. Às vezes, inclusive, o urubu está até dentro da gente. Né?
"Às vezes, inclusive, o urubu está até dentro da gente. Né?"
Ô se é. E por isso que é mais difícil de espantar o bicho :)
tenho sentido vontade de recolher o meu livro, agora que ele tá no mundo...
aí depois eu me acalmo e penso: posso escrever outro.
obrigada pelo texto!