Tenho uma amiga, uma grande escritora de livros de não ficção, que alimenta em segredo a escrita de um romance. Sempre incentivo, peço para ler, mas é impossível convencê-la a mostrar a história. Um dia crio coragem, ela me disse. Acho engraçado esse medo de se revelar enquanto ficcionista. Mas entendo. Escrever algo inventado, sem referências ou notas de rodapé, é assumir total responsabilidade pelo texto. Ao apresentar um romance para o mundo, não temos ninguém, absolutamente ninguém, a quem culpar em caso de falha. Ficamos vulneráveis. Muita gente não se acostuma nunca com essa vulnerabilidade.
Não vou mentir, é assustador. Acabei de lançar meu segundo romance e a sensação é de cair de um precipício, sabendo que fui eu que pulei. A partir do momento em que o livro está no mundo, ele deixa de ser seu. Vai passando então pela mão das primeiras testemunhas, que têm o direito universalmente reconhecido de avaliar a própria leitura. Se a maioria de nós não é e nem está em processo de se tornar um gênio, as críticas vão chegar. Elas sempre chegam, às vezes com potencial destruidor de uma bomba atômica. Resta abraçar as próprias imperfeições. É como aquela famosa expressão, não sabe brincar, não desce para o play.
Quando lancei meu livro de estreia, Apague a luz se for chorar, eu quis morrer com os primeiros comentários negativos que apareceram. Não que achasse o livro perfeito – muito pelo contrário –, mas é que a exposição me assustou. Eu, que até então era um caracol encolhido no escuro, com menos de dez leitores, de repente apareci na maior editora do país. Dói ser destruída em praça pública. O ego machucado ameaça nunca mais escrever de novo. O mesmo ego que alimenta a necessidade de continuar criando se ofende por qualquer mazela, as reações é que divergem. Tem gente que briga, persegue o leitor crítico, busca vingança. Acho ridículo. É natural não agradar a todos. Também acho infantil a atitude que eu mesma tinha, de querer me abandonar e me recolher ao tomar uma pedrada. Assumir uma fratura é libertador. Não há o que fazer, senão aceitar.
Escritores da literatura brasileira contemporânea têm muitos meios de acompanhar a repercussão do próprio livro. É mentira dizer que não espiamos de vez em quando a quantidade de estrelinhas na Amazon (ó, a dor no coração quando só caem uma ou duas estrelas!), ou não damos uma volta para espiar o que andam dizendo por aí no Skoob ou Goodreads. Outro dia brinquei que o Goodreads é o pior lugar para escritores mais sensíveis. O pessoal de lá não brinca em serviço. São as resenhas mais ácidas e honestas de toda a booksfera. Acho ótimo. O Goodreads talvez seja a salvação da nossa crítica, por vezes acostumada a elogiar o pouco e bater com luvas de pelica.
A questão é: você escreveu um livro. Talvez seja um livro muito bom para os seus parâmetros. Talvez não. Você sabe que fez o melhor que podia, dentro das próprias possibilidades. Algumas pessoas vão amar o seu trabalho, elevá-lo à quinta potência. É bom não ficar se achando – também terão as que vão te odiar e espalhar aos quatro ventos que a única coisa que você não sabe é escrever. Quem está certo, quem te venera, ou quem acha que você é um lixo?
Nenhum dos dois.
Artistas são tradutores da experiência humana e, como artistas, estão sujeitos a todas as contradições e subjetividades da raça. A experiência não será a mesma para todo mundo, e é bom que não seja. É um trabalho. Envolve paixão e às vezes pode ser terrivelmente pessoal, mas não deixa de ser um trabalho. Quem escreve para ser amado e idolatrado corre o enorme risco de falhar na própria missão (exceto se escreve apenas para a mãe). É do jogo ouvir uns desaforos e é muito sábio entender o que pode ser melhorado. Sempre há espaço para melhorar. A crítica é um caminho para chegar em algo iluminado. Eu, por exemplo, já sei o que faço bem, e qual é a barreira que preciso superar para subir de nível. Ouvir só os elogios, cabe dizer, é uma forma de se limitar.
Se tem uma coisa da qual tenho pavor, aliás, é dessa criatura mitológica conhecida como puxa-saco. Acho que todo mundo conhece certas pérolas douradas que vivem cercadas deles, talvez por necessidade de abrilhantar a própria existência, talvez pelo pavor de ouvir o contraditório. Acontece que o puxa-saco, além de não te levar para a frente, também te puxa para baixo. Bom mesmo é encarar as coisas de frente.
Quando as críticas batem um pouco mais duras, um pouco mais pesadas, tenho um método de consolo que funciona em 100% das vezes – corro para olhar as resenhas de alguns dos meus livros favoritos. É então que eu me lembro que o excepcional, como todo o resto, é subjetivo. Se alguém foi capaz de achar que os livros da Alice Munro são ruins, quem sou eu para querer ser perfeita?
Acima de tudo, escrever requer coragem. Fazer livro é difícil. Um livro bom, então, é dificílimo. Mais um motivo para se dar um desconto em dias de desânimo criativo. Ser corajoso o tempo todo também cansa.
Antes de ir embora...
· Jennifer Egan, autora de A visita cruel do tempo, é uma das minhas autoras favoritas. Ela deu uma entrevista espetacular para a New Yorker, que você pode ler aqui.
· A quem interessar possa, escrevi um depoimento contando sobre minha história com a endometriose e a infertilidade para a Revista AzMina. Na íntegra, aqui.
· Será que todo mundo anda lendo os mesmos livros? Da newsletter do Casarin
· Meu livro novo, Como se fosse um monstro, segue disponível para quem quiser ler (nem que seja para falar mal). Compre aqui.
Oi, Fabiane! O seu texto me fez lembrar de uma das minhas páginas do Instagram preferidas, que reúne só resenhas de 1 estrela no Goodreads. É hilário e é quase um gênero em si mesmo: https://instagram.com/goodreads_reviews?igshid=ZjE2NGZiNDQ=
Como leitora, tenho uma regra de bolso quando estou vendo resenhas: um livro bom em geral é aquele que vai desagradar tanto algumas pessoas a ponto de receber resenhas ruins. Isso porque um livro seguro, morno, não desperta nem reações muito ruins. A pessoa precisa ter corrido riscos na escrita pra irritar alguém a ponto da pessoa se dar ao trabalho de fazer uma resenha negativa, em vez de só ignorar e partir pra próxima. Então, de certa forma, uma resenha ruim pode ser um indicador positivo :)
Seu texto e suas reflexões me inspiraram, Fabiane :) Obrigado por compartilhar!