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Não durmo há três noites. Acho que tem mais alguns dentes brotando da gengiva da Isabel, mas é só uma aposta. Talvez ela tenha desistido de dormir de vez. De qualquer forma, meu pensamento parece impossibilitado de organizar tudo que ando pensando em parágrafos contínuos. Vou pedir empréstimo aos amigos que escrevem em blocos bonitos, essa edição sairá tão fragmentada quanto minha cabeça.
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No sábado, li um Twitter viral no qual a pessoa perguntava: se você pudesse fazer qualquer coisa no mundo sem se preocupar com as contas, qualquer coisa mesmo, o que você faria? Não me surpreendeu que a maior parte das pessoas tenha mencionado que seria artista ou trabalharia com a criatividade de alguma forma.
A arte, ao que parece, é a maior antítese do capitalismo.
Achei um pouco triste. Para ganhar dinheiro é preciso viver sem criatividade?
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Meu lado amargo ficou pensando, por outro lado, que não teríamos bons artistas se todos fossem artistas. E que talvez isso de só fazer alguma coisa caso não precisasse de retorno financeiro significa que no fundo você não quer fazer isso para valer. É só uma miragem de um desejo, uma daquelas invenções utópicas que a gente constrói para imaginar que a vida poderia ser melhor, ignorando toda a parte sofrida do processo. Tipo eu quando me imagino morando em uma roça ainda mais roça do que a casa onde vivo, plantando temperos e criando galinhas.
Eu não duraria um dia.
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O último relatório de venda dos meus livros quase me deixou à beira de lágrimas. Pela primeira vez, vou receber uma grana considerável, suficiente para pagar a prestação do meu financiamento imobiliário. Demorei uns quinze anos para chegar nesse estágio? Demorei. Nessas horas é que vale a pena.
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Os assinantes pagos dessa newsletter também já pagam minha conta da internet. Muito obrigada por isso.
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Eu adoro plantas e galinhas, não me leve a mal. A minha casa é cheia de plantas.
Mas quem cuida é o João.
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Estou lendo Três camadas de noite, da Vanessa Barbara, e me deliciando com o estilo mezzo jornalístico mezzo literário dela. Sou muito fã da Vanessa, que recentemente chegou aqui no Substack com sua Hortaliça. Meu romance preferido dela é Operação Impensável, que para mim é uma das maiores joias injustiçadas da literatura brasileira.
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Em Três camadas de noite, a personagem principal é uma mãe com depressão que cataloga a vida infeliz e deprimida de outras personalidades literárias enquanto lida com as delícias nada deliciosas da maternidade.
Para mim, que estou vivendo o inferno infinito e absoluto da privação de sono, cada parágrafo soa ironicamente real.
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Entre as personalidades literárias esmiuçadas ali, a personagem de Três camadas de noite relembra os perrengues da Clarice Lispector, lutando para pagar as contas e criar os filhos enquanto escrevia seus romances e contos, além de tentar conseguir uma editora. Em determinado trecho, lemos:
“[...] Depois de cinco anos de insistência, a coletânea de contos [Laços de família e A maçã no escuro] enfim saiu pela editora Francisco Alves em 1960. Foi um sucesso de vendas – o primeiro livro de Lispector a ganhar uma segunda edição, depois que os primeiros dois mil exemplares se esgotaram [...]”
Vejo que o conceito de sucesso de vendas não mudou nada desde então.
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Nessa entrevista resgatada no ano passado pela Revista 451, Clarice também relata que nunca ganhou um centavo pela traduções de seus livros publicadas no exterior, o que me deixou francamente horrorizada.
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O problema, ao meu ver, também está nisso de ver a arte e a criatividade como questões utópicas, alheias ao capitalismo. Eu gosto de escrever, respiro literatura, mas também gosto de dinheiro. Será mesmo que não dá para conciliar os dois? A Alê Garattoni fala muito sobre isso em sua ótima newsletter.
Isso de ser artista não é bagunça.
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A verdade é que trabalhar com criatividade e arte dá um trabalho gigantesco. Não é esse bolo rosa cheio de confetes e unicórnios que o povo pensa. Escrevo sobre isso toda hora, é por isso que meu boteco se chama Tristezas de estimação. É algo extremamente conflituoso e sofrido, porque além do peso da má remuneração, você ainda tem os problemas de cabeça. Escrever um livro, por exemplo, é passar metade do tempo odiando o próprio livro.
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Meus dois romances publicados ganharam reimpressões, seria eu um sucesso literário?
Ou sucesso é uma palavra muito forte?
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Se eu sou um sucesso, por que não me sinto um?
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Como a Clarice, tenho faniquitos ao reler trechos dos meus livros publicados. Sinto verdadeiro horror ao que já escrevi. A diferença é que eu não sou a Clarice, portanto o meu horror é justificável.
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Meu romance novo está com 95 páginas e ainda falta um bom bocado para terminar. Acho que será meu livro mais longo. Depois de ultrapassar a fase do “será que vale a pena escrever essa história?”, cheguei à fase do “será que os leitores vão gostar desse livro também, ou vão odiar?”
Agora já era, não vou jogar isso fora, nem escrever outro.
Sem tempo, irmão.
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Não tem problema alimentar um ideal utópico relacionado à criatividade. O meu, além da coisa das plantas e das galinhas, é aprender cerâmica.
Na minha cabeça, sou uma ótima ceramista.
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Para viver de arte e ganhar algum cascalho, no entanto, é preciso trabalhar muito. É um investimento com pouquíssima previsão de retorno. A satisfação é periódica. Só recomendo em caso absoluto de paixão.
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Quando pago minhas contas com dinheiro de literatura me sinto extremamente orgulhosa de todas as pessoas que inventei, mesmo que não consiga mais olhar para a cara delas.
Esse é o verdadeiro sucesso, eu acho.
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[momento para o jabá]
Aproveito o tema para dizer que tenho só mais uma vaga de mentoria disponível. Se você quer ajuda (com direito a chicote) para escrever um livro, me escreve: fabiane.c.guimaraes@gmail.com.
Também tenho vaga para mais uma leitura crítica em junho. Mesmo e-mail.
E se você quer só me ajudar a comprar as fraldas da Isabel, pode assinar a versão paga desta news aqui.
Se o Substack permitisse sublinhar o texto, eu marcaria todo ele. Te admiro muito, Fabi!
Comecei a ler puxada pelo título e pensando "essa mulher é muito f$&@, ela tem que ganhar MILHÕES com seu trabalho" e do nada me deparo com uma citação a mim! 😍 É exatamente isto, temos que entender que trabalho criativo não é bagunça, é trabalho. E a remuneração é a consequência honesta, ética e merecida desta troca!