Há vários dias escrevo obsessivamente o primeiro parágrafo do meu novo livro. Já escrevi mais algumas páginas, é claro, mas sempre que abro o arquivo para trabalhar nele, reviso o começo, porque ainda não estou satisfeita. Percebi que é quase um ritual. O primeiro parágrafo é importante para mim, porque sinto que é o momento em que jogo a isca, em que levanto a minha batuta, em que tenho a chance singular de captar os meus leitores. Talvez porque esse seja o meu comportamento como leitora. Tenho o hábito de julgar as histórias por suas primeiras linhas. Na livraria, sou aquela que abre o livro, lê o começo, e a partir daí já consigo dizer se tenho ou não interesse em continuar. É um pouco radical, eu sei, e nem sempre confere um prognóstico fidedigno. Saber começar, entretanto, é uma arte. Vale para romances, contos e newsletters.
Agora que estou às voltas com esse novo romance, tenho refletido sobre como as histórias ganham forma. Meus dois romances publicados foram escritos antes que eu tivesse me atrevido a escrever as Tristezas de estimação, então tem sido um processo interessante esse de criar de forma mais consciente, quase como se eu estivesse espiando a mim mesma, tomando notas na sala de roteiros da minha cabeça, espremida ali no cantinho, com uma caneca de café imaginária nas mãos. Então é assim que você faz as coisas, sua doida. Não ajuda em nada a acelerar as conclusões, vale dizer. Ainda fico perdida, construindo lentamente o precipício onde vou me jogar.
Nessa história em particular, tive a ideia do primeiro parágrafo enquanto amamentava a Isabel (tem sido sempre assim, agora). Eu sabia mais ou menos o que queria escrever, mas as ideias vieram todas fragmentadas e soltas, como pedaços de lixo entregues pela maré, eu tive que ir catando tudo no caminho. Eram várias histórias, possíveis ideias para contos, até que me veio o estalo, a noção de que eu não precisava desperdiçar nada, de que tudo aquilo que eu pensei ser de um jeito na verdade poderia ser de outro. A personagem que em um momento pareceu ser a protagonista de outro trabalho deveria diminuir sua participação para caber ali, dividir o palco com uma outra; o pano de fundo que serviu a tantas ideias fracassadas de repente caberia como uma luva. Um escritor também é um agente de reciclagem. Disso não se fala, do quanto a gente mexe com o lixo da própria mente.
O primeiro parágrafo, no entanto, foi importante. Nesse caso, ele uniu todas as pontas soltas. Está demorando a ficar do jeito que eu quero, mas saber que o caminho seria por ali iluminou o resto. Me deu um gás para seguir. Não sei até quando esse gás vai durar, geralmente empaco por volta da página quarenta, mas por enquanto estamos indo bem. E estamos indo bem porque eu sei a história. Quando eu deixo de saber, quando preciso escavar de novo o lixão, então surgem os problemas.
Para persistir, utilizo o melhor conselho de escrita que já recebi (acho essa coisa de receber conselhos um pouco datada, porque nenhuma fórmula é capaz de funcionar com todo mundo, mas nesse caso me ajudou). É algo que o Hemingway, supostamente, dizia ou disse. Mais ou menos assim: nunca pare de escrever a história sem saber como continuar. Isso porque, quando você não sabe como prosseguir a partir daquele ponto, será muito mais difícil retornar, e essa dificuldade pode fazer com que você vá adiando, até eventualmente abandonar o projeto. É algo que já testemunhei na prática, então utilizo essa técnica. Quando fecho o arquivo, já visualizo o que vou escrever quando reabrir.
Por mais que eu tenha vontade de partilhar mais sobre esse novo projeto, não é sábio fazê-lo ainda. É uma superstição minha. Não se conta as boas notícias antes que elas se concretizem, não se conta uma história antes de terminá-la, nem se compartilha o que ainda está sendo escrito. Mas vou dando notícias do processo por aqui.
Enquanto isso, fiquem aqui com uma coletânea de ótimos começos de livros (ou primeiras linhas), tirada da minha coleção particular, pois sou uma esquisita que reúne essas coisas:
Nenhum organismo vivo pode existir muito tempo com sanidade sob condições de realidade absoluta; até cotovias e gafanhotos, supõem alguns, sonham.
A assombração da Casa da Colina, Shirley Jackson, tradução de Débora Landsberg.
Meu nome é Mary Katherine Blackwood. Tenho dezoito anos e moro com a minha irmã Constance. Volta e meia penso que se tivesse sorte teria nascido lobisomem, porque os dois dedos médios das minhas mãos são do mesmo tamanho, mas tenho de me contentar com o que tenho. Não gosto de tomar banho, nem de cachorros nem de barulho. Gosto da minha irmã Constance, e de Richard Plantagenet, e de Amanita phalloides, o cogumelo chapéu-da-morte. Todo o resto da minha família morreu.
Sempre vivemos no castelo, Shirley Jackson, tradução de Débora Landsberg (sim, a Shirlinda era ÓTIMA em começos).
Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados. O doutor Juvenal Urbino o sentiu logo que entrou na casa ainda mergulhada em sombras, à qual chegara acudindo a chamado de urgência para se ocupar de um caso que para ele tinha deixado de ser urgente há muitos anos. O refugiado antilhano Jeremiah de Saint-Amour, inválido de guerra, fotógrafo de crianças e seu adversário de xadrez mais compassivo, se havia posto a salvo dos tormentos da memória com uma fumigação de cianureto de ouro.
O amor nos tempos do Cólera, Gabriel García Márquez, tradução de Antonio Callado.
Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para.
A morte do pai, Karl Ove Knausgard, tradução de Leonardo Pinto Silva (vale dizer que não gosto de Karl Ove e não li a série Minha Luta, mas esse começo é foda demais)
Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido. É melhor fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor ligado. Diga logo aos outros: “Não, não quero ver televisão!”. Se não ouvirem, levante a voz: “Estou lendo! Não quero ser perturbado!”. Com todo aquele barulho, talvez ainda não o tenham ouvido; fale mais alto, grite: “Estou começando a ler o novo romance de Italo Calvino!”. Se preferir, não diga nada; tomara que o deixem em paz.
Se um viajante numa noite de inverno, Italo Calvino, tradução de Nilson Moulin.
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis (o maioral e outro mestre em começos)
Acordei com os olhos grudados de lama, o nariz entupido de terra e a boca cheia de areia estralando nos dentes. Alguém me enterrou. Bichos alisavam minha língua, rastejavam pelos ouvidos e por outros caminhos para dentro das carnes. Debaixo do chão era uma agonia gelada, molhada, fedida. Não sentia braços e pernas no breu daquela cova. Perdi a noção do meu corpo, achei que me transformaria em um bicho morto, me desfazendo até virar pó. Ninguém sabe o que fazer na hora da morte.
Oração para desaparecer, Socorro Accioli (recomendo muitíssimo esse livro, o melhor nacional que li esse ano).
Tem algum começo que te marcou, que você gosta muito? Coloca aqui nos comentários, se eu gostar vai entrar para minha coleção.
"Um escritor também é um agente de reciclagem. Disso não se fala, do quanto a gente mexe com o lixo da própria mente." Esta sua frase é definitiva, Fabiane. É isso mesmo. Também sou como você, estou revisando meu romance e estanco no primeiro parágrafo cada vez que abro o arquivo. Por falar nisso, cito aqui dois parágrafos que para mim são também imbatíveis. O de Cem anos de solidão, com Aureliano Buendia em frente ao pelotão de fuzilamento lembrando da pedra de gelo, é inesquecível. E o primeiro parágrado de Terra Sonâmbula, de Mia Couto, Este me impactou tanto, que tive que ligar para um amigo e ler em voz alta ao telefone, tamanha a minha necessidade de compartilhá-lo com alguém. No mais, linda a tua news, como sempre. Parabéns. Abração.
O berro que eu dei no trecho: " Então é assim que você faz as coisas, sua doida".
Concordo com você, os primeiros parágrafos precisam de esmero, como num jogo de sedução, é ele que leva o leitor com o livro pra cama, rs. Eu comecei o meu romance pelo final, não recomendo.